Esqueletos
Promising Young Woman e a subversão do rape-revenge
Atualizado: 17 de jan. de 2021
Alerta de gatilho: Esse texto trata de um subgênero do cinema de horror muito atrelado à violência sexual, portanto alguns trechos detalham estupro e outros tipos de abuso que podem causar mal estar por conta da temática.
Aviso de spoilers: o texto contém descrições do desenvolvimento de alguns filmes clássicos.
Quando Brock Turner, um estudante da universidade americana de Stanford, foi acusado de agredir sexualmente uma colega inconsciente e condenado a seis meses de prisão (embora no fim das contas tenha cumprido apenas metade da sentença), parte da repercussão desse caso acabou sendo focada no tratamento dado ao rapaz, de então 19 anos, pela mídia. Grandes portais, como Time e CNN, se referiram à Turner - mesmo após sua condenação oficial - como "o nadador de Stanford" e até mesmo "jovem promissor". Essa narrativa que constantemente parecia despi-lo de seus atos gerou revolta na internet e chamou atenção pelo modo que até mesmo os veículos de informação parecem corroborar com a negligência que mulheres sofrem nesses casos... mesmo se o acusado tiver sido legalmente condenado como um estuprador.
Quatro anos depois, o termo parece ter servido de inspiração para o título de um dos filmes mais controversos - e aclamados - de 2020. Promising Young Woman, estreia na direção da britânica Emerald Fennell, vem crescendo nos últimos meses como um forte concorrente na temporada de premiações, gerando um notável burburinho para o seu roteiro e a atuação brilhante de Carey Mulligan. Sua premissa envolve uma moça com um trauma no passado que busca vingança de predadores sexuais, fingindo estar embriagada em bares da cidade, à espreita de algum "homem legal" que tente se aproveitar dela. Achou familiar?
Promising Young Woman parece ser o mais novo exemplar de uma ressurgência silenciosa, intensificada nos últimos anos pelas repercussões do movimento #MeToo, de um antigo subgênero do exploitation: o rape and revenge.

Por muitos anos, este subgênero parecia ser a veia mais feminista do horror. Afinal, como a própria denominação sugere, são histórias que envolvem estupro e vingança e construiu ao longo das décadas essa imagem de mulheres fortes fazendo seus agressores pagarem na mesma moeda (ou até mais caro). Um dos principais responsáveis pela popularização desses filmes foi A Vingança de Jennifer (1978), lançado no auge dos exploitations daquela década. Não foi o primeiro, até porque alguns anos antes Wes Craven lançava algo semelhante em The Last House on the Left (1972), mas o boca-a-boca, péssima recepção da crítica e uma série de proibições ao redor do mundo construiu essa aura de curiosidade em torno do filme.
Jennifer, um nome que será constantemente repetido ao longo desse texto, é uma escritora de Nova York que viaja até o interior, onde alugou uma casa de lago, para aproveitar a quietude e terminar seu novo livro. Solteira e bem-resolvida, ela chama atenção de quatro caipiras que expressam desde o início um interesse nada saudável na moça, o que resulta numa dolorosa sequência de eventos onde a moça é violentada, estuprada e quase assassinada. Tudo isso dura quase 30 minutos ininterruptos dentro do filme. Ao se recuperar, Jennifer arquiteta sua vingança e um por um, atrai de volta seus agressores para matá-los e "cuspir em suas covas", como anuncia o genial título original.
Se por um lado, pode-se imaginar que filmes como esse servem como uma fantasia catártica (visto que estatisticamente, casos assim raramente acontecem), por outro esse argumento torna-se questionável quando essa personagem ainda é altamente sexualizada no pior momento de sua vida. As longas sequências de violência sexual e psicológica exploram seu corpo tão quanto os antagonistas, o que leva à impressão de que a parte da vingança no segundo ato parece uma consequência bem além dos limites narrativos. É como se ela estivesse lá apenas para justificar a exploração anterior.

Outro exemplar importante dessa safra é o Ms .45 (1981), ou como foi lançado no Brasil Sedução e Vingança, do diretor Abel Ferrara. Vindo das raízes mais fortes do exploitation e grindhouse, é até surpreendente que Ms .45 seja um filme sutil na hora de mostrar a violência que sua protagonista, uma costureira muda, sofre. Estuprada duas vezes em um curto espaço de tempo, em duas ocasiões diferentes, ela encontra na arma de calibre .45 sua voz, embarcando numa jornada de vingança misândrica pelas ruas sujas de Nova York.
Décadas depois, o subgênero ganhou sobrevida com uma nova reimaginação da Jennifer (como falei, ela é um elemento importante). No remake Doce Vingança (2010), a história é a mesma. Mas se havia a oportunidade de corrigir algum erro do original, foi perdida. A cena do estupro tem ainda mais abuso psicológico e embora, como filme, seja tecnicamente mais bem feito que o original, é tão problemático quanto justamente por repetir os mesmos erros décadas depois.

A questão é que esse tipo de filme não era feito para mulheres. Por mais que usassem uma falsa mensagem de empoderamento, eles são repletos de fantasias fetichistas e medos intrinsecamente masculinos. É a figura feminina revidando, emasculinizando da maneira mais visceral possível: castração e estupro anal. Afinal, nada que aterrorize mais o "macho" do que tirando seu símbolo mais iconográfico e violando seu canal mais precioso, certo? Reforçar esse tipo de estereótipos também é problemático.
A refilmagem por si só gerou três continuações (a última, uma sequência direta do original, chega a trazer de volta a primeira Jennifer apenas para decapitá-la na primeira metade de filme), mas também foi responsável por ressuscitar oficialmente o subgênero. De um lado negativo, tivemos repetições do mesmo erro. De um outro positivo, o retorno dos rape-revenge ao mainstream deu a oportunidade perfeita para que uma nova geração de cineastas mulheres pudessem trazer uma visão mais apropriada para essas histórias. E agora, finalmente, chegamos ao ponto desse texto.

Revenge (2017), de Coralie Fargeat, colocou mais uma "Jennifer" para buscar sua vingança mas resolveu mudar um pouco a maneira de fazer este jogo. Jen (Matilda Lutz) é levada pelo seu namorado, um homem casado, para passar dois dias numa casa isolada no meio do deserto. Com a chegada inesperada de uma dupla de amigos dele, Jen acaba sendo estuprada por um deles. Rejeitando chantagem do namorado e ameaçando contar sobre o caso para sua esposa, Jen é jogada de um penhasco e deixada para morrer.
Este filme é provavelmente o exemplo perfeito de que o problema não é exatamente o subgênero do rape-revenge, ou muito menos o do exploitation, mas sim a sua execução. A lente de uma diretora já demonstra uma diferença de tato gritante, visto que ainda que a violência sexual seja o evento catalisador da trama, ela nunca se aproveita dela para explorar a personagem mais do que o necessário. A própria cena da agressão é filmada de uma maneira menos gratuita e mais sutil, sem que diminua o impacto dela.
Jen milagrosamente consegue se recuperar da queda e após usar uma substância alucinógena, "renasce" como um anjo de vingança buscando justiça contra o trio de homens. A caçada começa e no fim do filme, quem está completamente pelado e coberto de sangue é o principal antagonista. A objetificação do filme é dos homens, e não da mulher. E isso não quer dizer que ela não possa ser caracterizada como uma mulher sexual, pois ela é. Mas em nenhum momento, a câmera do filme a viola.*

A Jen de Revenge não foi exatamente a primeira a pegar o nome emprestado numa história similar. Em Garota Infernal, filme dirigido por Karyn Kusama e escrito por Diablo Cody, Megan Fox estrela como uma líder de torcida assassinada num sacrifício, que retorna dos mortos para se alimentar de homens. De uma certa forma, o roteiro utiliza algumas das características clássicas do rape-revenge e embora a Jennifer não tenha sido violentada sexualmente, as especificidades da sua morte são analogias claras a um estupro.
*Um comentário importante a adicionar aqui é que existe uma diferença entre mostrar uma personagem sexual e sexualizar uma personagem, e sim, algumas vezes essa linha pode ser tênue mas tudo depende da visão do cineasta e, por consequência, da câmera. Uma personagem pode explorar sua sensualidade sem ser objetificada e é por isso que precisamos de mais mulheres dirigindo e roteirizando. Ótimos exemplos disso são filmes como Psicopata Americano (2000) e o próprio Garota Infernal (2009).
A presença de mais diretoras/roteiristas contando esse tipo de história fez com que os filmes de rape-revenge sofressem uma espécie de subversão. M.F.A. (2017), da brasileira Natalia Leite, examinou a cultura de estupro quebrando as expectativas clássicas do gênero. O segundo filme de Jennifer Kent, The Nightingale (2018), mostrou os horrores patriarcais sofridos pelas mulheres durante a Guerra Negra no século 19. Já Sophia Takal inseriu uma crítica didática à misoginia e descrédito de vítimas de estupro em universidades em seu Natal Sangrento (2019).

Num exemplo talvez inesperado mas igualmente importante, a minissérie semi-biográfica I May Destroy You (2020), da britânica Michaela Coel, serviu de catarse para uma experiência pessoal da autora. Embora não seja uma história do gênero, Coel utiliza sua escrita para lidar com o trauma e se livra de qualquer limites ou expectativas que uma história desse tipo pode carregar. Em um episódio-chave, ela finalmente encontra seu estuprador e tenta imaginar o que deve fazer: ela irá armar um plano para se vingar dele da maneira mais cinematográfica possível? Ela irá confrontá-lo em busca de um motivo? Ou apenas perdoá-lo?
I May Destroy You levanta outro ponto relevante para essa discussão. Toda a narrativa da sua protagonista, Arabella, não a resume à violência que ela sofreu. Talvez um dos maiores problemas dos filmes rape-revenge é como suas personagens são unidimensionais, resumidas inteiramente ao seu sofrimento e sua sede de vingança, com poucas tentativas do roteiro de desenvolvê-la como um ser humano além disso. Existe uma desumanização nesse processo, o que parece afastá-las ainda mais da realidade e aproximá-las de uma fantasia. Se não há um espaço para essas mulheres se curarem além da violência extrema contra aqueles que a violaram, que tipo de mensagem essas histórias realmente passam?

Promising Young Woman repara algumas dessas questões, também quebrando a fórmula clássica de três atos que a narrativa dos rape-revenge costuma seguir à risca: uma mulher é brutalmente violentada > ela arquiteta uma vingança contra seus malfeitores > ela facilmente os atrai e destrói cada um deles. No filme, não há essa violência que serve como ponto de virada para a história, tampouco Cassie é a pessoa que a sofre. O trauma da personagem vem da violência que sua melhor amiga de infância sofreu na faculdade. Estuprada numa festa e constantemente desacreditada pela justiça e todos ao seu redor, seu suicídio fez com que Cassie entrasse numa espiral, largando o curso de medicina (mesmo sendo uma das melhores da turma) e indo trabalhar como barista num café.
Só que durante a noite, Cassie vai a bares, finge estar bêbada e vulnerável e espera que algum homem com "boas intenções" (ou assim talvez eles dizem para si mesmo até acreditarem) se aproveite dela. No entanto, Cassie não chega a matá-los, como se pode esperar. Subvertendo as expectativas do público pela violência, o roteiro apresenta escolhas inesperadas enquanto brinca com o que se pode esperar de um thriller de rape-revenge. A intenção do roteiro de Fennell é explorar as maneiras como as mulheres podem manifestar a raiva e ira que sentem quando não necessariamente recorrem à violência, "apesar do que a maioria dos filmes de vingança nos mostram". Como Cassie poderia foder com a vida de alguém sem machucá-los fisicamente?

Cassie é uma personagem guiada pela vingança mas ao mesmo tempo ela é completamente perdida. É criando todo um universo pessoal ao seu redor que Promising Young Woman não a reduz a uma máquina de justiça, mas a uma pessoa emocionalmente fragmentada presa numa espécie de vício. Ela é forçada a encarar esse vício quando se reconecta com um antigo colega de faculdade, Ryan (Bo Burnham). Pela primeira vez em tempos, Cassie vê a possibilidade de ter uma vida normal e superar seu trauma.
Utilizando uma estética bubblegum e músicas deliciosamente pop (de Charli XCX à Paris Hilton), o roteiro nos desprepara para uma armadilha. O filme não está ausente de violência e quando ela finalmente chega, quando o público acredita que finalmente vai receber o que espera, é da maneira mais amarga possível. Com um controverso final, Promising Young Woman reafirma uma verdade desconfortável e a principal problemática nos filmes rape-revenge: a cultura de estupro não acaba com a vítima se vingando de seus violentadores. Muito menos se elas fazem isso de maneiras fora da realidade. A quebra de expectativa não serve apenas para a protagonista do filme, mas para a própria audiência, que de alguma forma pode esquecer que ela era e sempre foi uma vítima do sistema, independente da sua vontade de se vingar.
A ressignificação do rape and revenge prova que, mais do que nunca, há espaço sim para esse tipo de narrativa. Eventos como os escândalos de Harvey Weinstein e repercussões do #MeToo nos mostraram que histórias como essas precisam serem contadas. Seja de uma maneira mais realista (o recente A Assistente, baseado diretamente no Weinstein, é um ótimo exemplo), de uma maneira mais over-the-top (como Revenge) ou de uma maneira mais satírica como o próprio Promising Young Woman. A questão é que, com cineastas mulheres finalmente contando essas histórias, elas ganham um propósito muito além do shock value.