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  • Foto do escritorGustavo Fiaux

O Inferno São os Outros: A culpa cristã em Saint Maud e A Bruxa

Atualizado: 3 de abr. de 2021



Atenção: Esse post pode conter spoilers de momentos importantes de ambos os filmes. É recomendado ter assistido ambos antes da leitura.


Fé e fanatismo caminham juntos desde que o mundo é mundo — ainda mais quando falamos do cristianismo enquanto instituição. A chamada “religião do novo mundo” veio para espalhar uma dominância sociocultural no momento mais oportuno, diante da queda dos credos politeístas e a perspectiva de uma expansão imperialista sobre os povos tidos como “selvagens” na África e nas Américas.


Assim sendo, é impossível dissociar tudo o que vemos em âmbitos culturais, sociais, econômicos e políticos da religião cristã. As ideias ocidentais de moral e ética são fundamentadas no código bíblico. Até mesmo figuras mitológicas de bem e mal são trazidas da dicotomia Deus X Diabo. E como toda arte é política, o horror também se influenciou muito pelo cristianismo — seja no crucifixo usado para expurgar Regan de seu demônio em O Exorcista, ou quando o pobre policial bonzinho e cristão é assassinado por uma corja de pagãos em O Homem de Palha.


Poucos filmes, no entanto, conseguem subverter essa lógica ao ponto de apresentar os grandes detentores da “moral e bons costumes” como figuras cruéis, assustadoras e vis. Não que isso seja um caso raro e impossível de se achar, já que diversos diretores apostam na desconstrução da fé cristã e do fanatismo que crepita na religião. Mas a cada novo filme de terror lançado, é bem mais provável vermos os mocinhos usando cruzes e esguichando água benta que fazendo ritos considerados pagãos ou satânicos.



Na última década, dois filmes de grande importância se propuseram a destruir as barreiras e escancarar a culpa cristã como um dos maiores males da humanidade. De um lado temos A Bruxa (2015), filme de Robert Eggers que já garantiu sonhos molhados a todos os cinéfilos que defendem o rótulo maldito do “pós-horror”. Do outro, o recente Saint Maud (2019), longa-metragem de estreia de Rose Glass que aposta no contraste entre divino e profano para entregar um estudo de personagem sobre a destruição psicológica e física de uma mulher deprimida e reprimida sexualmente - tipo Coringa, but make it christian.


A obra de Eggers dispensa apresentações, mas irei fazê-las mesmo assim. Na trama, seguimos a jovem Thomasin, a filha mais velha de um casal que precisa encontrar refúgio nas matas da Nova Inglaterra após serem exilados do vilarejo onde moravam. Entre seus afazeres domésticos e os momentos de descontração com os irmãos mais novos, a garota, junto de sua família, começa a vivenciar as atividades de uma suposta bruxa da floresta, que comete atos hediondos e ameaça toda a segurança e pureza de um lar cristão.


E isso certamente poderia ser uma história qualquer onde um padre chega para atender aos pedidos de socorro da família e expulsa a serva do demônio. Porém, Eggers decide coçar a ferida ao colocar Thomasin como a principal suspeita de atos satânicos, constantemente maltratada e flagelada por seus próprios pais. A culpa cristã se instala e o resto não é muito difícil de deduzir, com a própria Thomasin se voltando contra a fé que a aprisiona e entregando de vez sua alma ao Diabo.


À primeira vista, Saint Maud não parece casar bem com essa ideia. Na verdade, o filme opta por um rumo diametralmente oposto, seguindo a fervorosa Maud enquanto ela é contratada para cuidar de uma mulher hedonista e que está à beira da morte. No papel de enfermeira, ela precisa tratar da saúde física de sua paciente, mas os limites são borrados e ela começa uma verdadeira cruzada pessoal para salvar a alma da mulher e garantir seu lugar no Céu — ainda que isso seja contrário às vontades da enferma.


Diferente de Thomasin, Maud nunca chega a ser confrontada pelos grilhões de sua própria fé. Pelo contrário, a cada nova provação e virada de roteiro, ela parece se firmar ainda mais em sua crença, transformando-se em uma vingadora celestial disposta a tudo para alcançar o divino e sagrado — ainda que aproprie-se de modos bem… anticristãos para conseguir o que quer.



Ambos os filmes mostram um momento de despertar espiritual na vida de suas protagonistas. Se Thomasin é a pária que precisa lidar com todo o ódio e o fanatismo de seus pais e irmãos e, a partir disso, passar por um processo de libertação, Maud é a mártir que precisa entregar seu corpo e sua alma para tornar-se um espírito superior, a beata que consegue transcender a carne, mesmo que apenas em sua cabeça.


E embora suas construções individuais as afastem, o modo como são vistas por seus iguais as aproximam com força total. Tanto Thomasin quanto Maud são tratadas como seres monstruosos e dignos de medo. A protagonista de A Bruxa pode até ser inocente, mas seus atos são tratados com a devida ambiguidade aos olhos dos outros personagens do filme e do próprio público, de modo que plante-se a dúvida sobre ela ser ou não uma bruxa.


Em Saint Maud, a protagonista titular não deixa de ser vista da mesma forma, embora suas ações sejam mais explícitas e imediatas. Ao estar rodeada de pessoas que não dão a mínima para sua fé e seu “chamado superior”. Maud acaba se transformando em uma louca digna de pena. É curioso inclusive que, ao fim do filme, ela acabe morrendo em uma “fogueira”, quase como se fosse uma bruxa, em seu último delírio de glória e grandeza.


Resumo da ópera: a personagem de Anya Taylor-Joy é uma bruxa que passa por todo o processo da perseguição e da culpa cristã e começa sua lenta descida do purgatório ao inferno, onde se entrega de corpo e alma à bruxaria. Já a protagonista de Morfydd Clark alça seu voo final aos céus enquanto abraça toda a culpa como parte de si, como uma força motriz que a leva para mais perto do Todo-Poderoso.


Essa semelhança é muito bem representada em duas cenas chave de cada filme. Em A Bruxa, vemos Thomasin conversando com Black Phillip em sua forma humanoide. O bode demoníaco oferece a ela a visão de um mundo melhor, o gosto da manteiga e das laranjas. E ela, sem pestanejar, aceita — uma catarse sombria depois de tudo o que ela passou. Após uma hora e meia comendo o pão que os cristãos amassaram, ela finalmente encontra sua liberdade, enquanto mulher e enquanto bruxa.



Em Saint Maud, uma cena semelhante acontece próxima ao terceiro ato do filme. Em um de seus delírios, Maud é visitada por uma imagem celestial, chegando a ter uma conversa muito profunda com Deus. E aqui, essa divindade - quer ela seja real ou apenas fruto da cabeça perturbada da beata - promete a ela uma vida sem sofrimento, desde que cumpra um último martírio.


Aliás, diga-se de passagem, as duas atuações principais são essenciais para que os filmes possam atingir seu impacto total. Anya Taylor-Joy fez sua estreia monumental em A Bruxa, compondo uma personagem que parece ser a única pessoa sã em um covil de maníacos, enquanto Morfydd Clark faz sua jornada lenta às espirais da loucura, ganhando um olhar cada vez mais vidrado conforme a duração de Saint Maud se esvai.


Sem Morfydd, Saint Maud seria um lindo slideshow com cenas belíssimas e uma excelente fotografia, mas é a atriz que dita o tom da obra e que faz com que o filme ande no cruel limiar entre a melancolia e a contemplação, muitas vezes beirando uma história de possessão demoníaca, ainda que seja do ponto de vista de um arrebatamento angelical, sem o violento vômito de sopa de ervilhas e contorcionismos com a cabeça.


Mesmo lançados com quatro anos de diferença e partindo de óticas completamente diferentes, Saint Maud e A Bruxa se complementam na ideia de destruir cada coisa linda que sabemos sobre o cristianismo e a culpa cristã que nos é imputada diariamente pela sociedade. São filmes que conversam muito bem entre si, e não apenas por serem exemplares do “pós-terror da A24”. A experiência de vê-los em conjunto expande ainda mais essas visões e levanta outros questionamentos, até mesmo acerca de gênero e como a direção de Rose Glass trata do corpo e do desejo feminino de um modo muito delicado, explorando inclusive o espaço queer dentro da religião.


No fim, ambos os filmes entrelaçam sagrado e profano, seja através das imagens de sacrifícios pagãos e ritualísticos ou seres angelicais feitos de luz. E é justamente por aproximar essas ideias de personagens tão humanas e tão ricas que as duas obras conseguem atirar a pedra na cruz e trazer, de forma tão impactante, o cristianismo fanático como antagonista e não como salvador.

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