Luiz Machado
Scooby-Doo 2: Monstros à Solta é, de fato, um dos melhores filmes já feitos
Atualizado: 31 de out. de 2020
No longínquo ano de 2004 estreou o que era, historicamente, um dos mais subestimados filmes já produzidos. Com risíveis 22% de aprovação pela crítica especializada no site Rotten Tomatoes, Scooby-Doo 2: Monstros à Solta foi um fracasso tão grande que cancelou o fim da trilogia originalmente planejada por James Gunn. Uma pena, mas assim como boa parte dos clássicos menosprezados, hoje, 16 anos depois, o filme envelheceu como um bom vinho. No dia de sua entrada na Netflix ele conseguiu o número 1 entre os mais assistidos no Brasil e isso mostra o impacto desta obra cinematográfica, superando inclusive seu antecessor, o aclamado (na minha cabeça) Scooby-Doo de 2002. Por mais que pareça, esse texto não é irônico e nos próximos parágrafos tentarei explicar o motivo de eu ter gostado tanto deste filme em minha revisitada, mas antes voltemos um pouco no tempo.
Desde criança eu tenho sido obcecado por Scooby-Doo, acho que assim como muitos fãs de horror, hoje adultos e tristes, a animação tenha sido a porta de entrada para o gênero. Apesar de extremamente formulaica, ela ainda possui seu charme e continua se renovando exatamente pelo mesmo motivo que à fez um sucesso quando começou, em 1969: no final dos monstros são humanos. A lição sempre foi essa, está na no coração e origem da fórmula do sucesso de Scooby-Doo, além de seus personagens extremamente carismáticos, claro. Por anos eles foram desvendando mais e mais mistérios e nunca cansamos disso, mesmo sabendo do final.

Foi nessa onda de nostalgia que nasceu o filme de 2002. A ideia original de James Gunn (que mais tarde iria roteirizar o excelente primeiro Guardiões da Galáxia e o regular segundo) era um filme para adultos. Além de piadas mais “maduras” – por assim dizer – algumas questões implícitas na animação estariam escancaradas aqui. Mas algumas mudanças foram impostas pelo estúdio após ver o potencial infantil também, afinal, lá no começo do milênio, Scooby-Doo ainda era ALGO para as crianças e não apenas uma nostalgia adulta. Entre as principais “perdas” dessas alterações está a mais triste de todas: a sexualidade de Velma. Por muitos anos a tratamos como a rainha lésbica que ela é e o roteiro original o fazia também. Porém como bem sabemos, personagens clássicos sendo abertamente LGBTs não vendem bem até hoje (sei lá, a Disney só aceitava viado em filme quando era pra ser vilão queercoded, né?). Porém ok, superamos, faz quase 20 anos e isso não importa mais. Diga-se de passagem que tenho quase certeza que a personagem favorita do James Gunn é a Velma pelo TANTO que esse homem desenvolveu ela nestes dois excelentes filmes.
O primeiro funciona muito bem até hoje por entender exatamente o que um live action desse tipo precisava ser: uma paródia. Levar uma animação pra tela raramente funciona, são formatos e narrativas diferentes e na hora de transcrever você sempre perde alguma coisa. O filme de 2002 é um puta acerto por fazer o caminho inverso, além de uma história clássica respeitando todos os arquétipos e clichês criados décadas antes, ele iria desconstruir. É um filme que veio com a proposta de usar o que você já sabe sobre Scooby-Doo para te pegar de surpresa. Algo que o Wes Craven fez muito bem anos antes em Pânico. Então neste filme, logo nos primeiros 10 minutos, ele já escancara TUDO o que você já sabia - ou PENSA que sabia - e pisa em cima. Temos a Daphne sendo mais uma vez sequestrada, Salsicha e Scooby sendo atrapalhados, Velma resolve tudo, porém é ofuscada pelo Fred no final que sempre pega o discurso de “RESOLVEMOS O CASO OLHA SÓ HAHA”. Você sabe muito bem onde está e essa familiaridade é o maior coringa do roteiro. Dali pra frente é uma deliciosa paródia super ácida e cheias de piadas adultas que só fariam sentido pra mim alguns anos depois da puberdade. Criança não pega nuance e esse é o maior trunfo destas adaptações. Você tem uma aventura infantil boba e descompromissada, mas ao mesmo tempo um roteiro metalinguístico que desconstrói o que você sabe sobre esses personagens. Pelo amor de Deus, eles usam o fodido do Scooby-Loo como vilão! Todo mundo odiava aquele cachorro! A SAGACIDADE desse filme é algo ainda mais impressionante 20 anos depois.
Obviamente a crítica especializada – como a piada que é – não entendeu o conceito e o filme amarga com 30% de aprovação até hoje. Um absurdo, se me permitem a opinião (o texto é meu).

Porém, apesar de seu fracasso na crítica, comercialmente o filme foi bem e garantiu sua merecida continuação. Em 2004 a indústria cinematográfica tremeu. Monstros à Solta tinha a difícil tarefa de dar continuidade para a franquia, mas depois de uma paródia o que poderia vir? De forma inteligente o roteiro opta por uma abordagem muito mais simples e direta do que seu antecessor. Aqui não temos grande plot, o filme, diga-se de passagem, nem tem história direito. Na estreia em uma exposição dos grandes casos da turminha, uma das fantasias ganha vida e coloca em cheque tudo o que eles conquistaram ao longo da carreira. A narrativa inteira é construída só pra usar uns 50 monstros diferentes e eu respeito isso. Porém aqui seu charme maior se revela: o delicadamente caricato desenvolvimento dos personagens. Enquanto no primeiro o foco parecia ser em Salsicha e Scooby tentando salvar a amizade de seu grupo a qualquer custo, neste o papel é o inverso. Velma, Daphne e Fred estão mais unidos que nunca e os nossos dois alívios cômicos parecem sobrar.
Então entramos em uma das questões mais importantes deste filme: o sentimento de pertencimento. Os dois patetas, que antes eram a cola que juntava a Mistério S.A., agora se sentem mais deslocados do que nunca. Eles percebem como nunca ajudam nos casos e querem provar para os colegas que são mais úteis do que ser apenas um motivo de piada. Se sentir excluído por seu próprio grupo de amigos não é um sentimento incomum e para um filme infantil falar disso com essa delicadeza, mas ao mesmo tempo expondo muito bem os sentimentos dos personagens, é algo admirável. A dor deles é palpável e apesar de caricato, como é objetivo, ainda adiciona camadas aos personagens há muitos anos conhecidos apenas por serem o humor da série. Bom, amigos, novidades, Scooby e Salsicha têm sentimentos!
Essa sensação de disparidade emocional não atinge só os trapalhões. Como James Gunn trata com muito carinho a Velma, aqui, criminalmente ele confirma sua heterossexualidade, mas isso acaba sendo tão bem desenvolvido que posso perdoar (apesar de ainda doer). Mesmo sendo "pincelado" no primeiro filme, em Monstros à Solta ela ganha mais algumas camadas de complexidade ao sermos apresentados à Seth Green como seu interesse amoroso. Velma mostra suas inseguranças e como não se sente confortável fora de sua zona de conforto, como ela mesma chama, o "mundo da lógica". Em um dos melhores momentos do filme, ao ver o amado, ela se joga no chão e rasteja, sendo amparada emocionalmente por Daphne. O texto é ácido, bobo, mas direto ao ponto. Neste diálogo ela expressa como não possui medo de monstros por sempre que as máscaras caem eles não passam de “homenzinhos assustados”. Nesta a Daphne responde: “Já parou pra pensar que talvez lobisomens e fantasmas sejam só distrações que mantêm você afastada do que têm medo? De intimidade com outra pessoa?”
É um desenvolvimento muito bonito quando, depois de sem fantasiar toda e se preparar, ela perceba que o que a faz atraente é ser ela mesma. A performance de Linda Cardellini só coroa a personagem. Ela vai crescendo junto com a história. Velma é muito inteligente e tem provavelmente o melhor arco de autodescoberta do filme. Além do humor impecável da cena em que ela usa sua roupa de látex vermelha para tentar seduzir aquele homenzinho sem graça. Diga-se de passagem que eu deixaria a Linda Cardellini fazer o que quiser comigo (mentira, eu sou gay).
Outro personagem que ganha novos ares nesta versão é Fred. Nosso loirinho, gostoso e burro favorito vai além da imagem de metido a besta que o primeiro filme dá pra ele. Têm uma questão muito interessante sobre masculinidade tóxica no roteiro, em mais de um momento do filme Fred fala que não quer ser um "maricas", principalmente após o grupo perder tudo e Daphne (a pessoa emocionalmente mais estável e segura do grupo) perguntar a ele se quer falar sobre seus sentimentos. Fred é o tipo de homem que cresceu para achar que suas conquistas o definem. Por isso ele sempre roubou o holofote de Velma, sempre preso a essa imagem de macho alfa, o líder do grupo. No final ele se sente tão sozinho e deslocado quanto o resto, por mais que negue e se prenda a essa casca de homem forte. Perto do final, ao enfrentar o Cavaleiro , ele e Daphne estão derrubados após quase perderem a luta para os monstros. Rola uma conversa rápida e super sincera sobre como Fred se sente. Mostra um pouco sobre esses sentimentos que ele escondeu por tantos anos e finalmente se sente confortável para admiti-los e assimilá-los como parte de si. Ele inclusive confronta o fantasma por observar o mesmo problema nele, a dificuldade de se abrir e ser um “maricas”.

A agora chegamos ao momento de coroamento deste texto, vamos falar sobre ela, ela mesma, a eterna rainha SEMPRE: Daphne Blake. Como neste ponto você já deve ter percebido, ela é a personagem mais segura de si dos dois filmes. Mesmo sendo tratada como arrogante em alguns momentos, ela têm uma autoestima impecável e isso a faz ser a mais madura do grupo. É interessante ver como o roteiro se preocupou e desconstruir essa personagem. A Daphne das animações originais servia unica e exclusivamente para ser sequestrada, ela não "ajudava" tanto nos mistérios. Era o esteriótipo da patricinha, a moça bonita que toda garotinha quer ser. Isso fica ainda mais evidenciado na cena em que ela confronta a personagem da jornalista, interpretada por Alicia Silverstone. A vilã passa o filme inteiro tentando desestabilizar os personagens. Neste momento quando Daphne vai defender a honra de seus amigos, ela é questionada: você serve pra quê neste grupo? Não passa de um rostinho bonito.
O momento fica melhor ainda quando Daphne percebe o twist final nesta cena. Ela resolve o mistério na metade do filme! E aqui está uma das melhores coisas desses live actions: ela. O que James Gunn fez foi pegar a personagem mais unidimensional da série e dar muita personalidade pra ela. Daphne serve quase como um guru emocional para os outros. Ela resolve o mistério, liberta eles em um momento, sabe lutar e ainda SERVE looks. Agora ela REALMENTE é tudo o que uma garotinha quer ser. Aposto que a Sarah Michelle Gellar deve ter se divertido tanto fazendo a personagem quanto eu assistindo ela no filme e sou eternamente agradecido por esse casting.
Enfim, estas são algumas questões que observei enquanto assistia esta obra-prima. Ele é muito mais simples e formulaico que seu anterior, mas isso o torna ainda mais grande e poderoso. Já que usa de sua narrativa simplória, muito mais parecida com a série animada, para seus personagens cheios de personalidade brilharem... E têm muitas cenas de monstros bacanas. Eu gosto de monstro. Essa franquia não ter ido pro terceiro filme pra me dar MAIS da turminha e mais monstro é um crime que eu nunca vou perdoar. No final das contas Scooby-Doo 2: Monstros à Solta, assim como muitos outros clássicos, é um filme injustiçado que finalmente está tendo seus dias de glória e merece todo o amor que lhe foi renegado anos atrás, pois é, legitimamente, um dos melhores filmes já feitos.