A unidade entre carne e máquina em Tetsuo: O Homem de Ferro
Não se preocupem, fãs de Scorsese. Apesar do título Tetsuo: O Homem de Ferro fazer lembrar o famoso personagem da Marvel, o longa de estreia do japonês Shinya Tsukamoto não tem nada de filme de boneco. Tetsuo é um horror corporal por excelência, que explora a corrupção do corpo pelo metal e a morbidez do híbrido entre biologia e tecnologia.
Assim como o cinema de David Cronenberg, o cerne da obra de Tsukamoto é a materialidade. O corpo é a realidade, e é muito mais do que apenas matéria orgânica. Tudo começa quando o protagonista, creditado como assalariado e interpretado por Tomorowo Taguchi, acidentalmente atropela outro homem, interpretado pelo próprio diretor e que foi creditado como fetichista de metal. Logo em seguida, o protagonista começa a ser assombrado por pedaços de metal brotando em seu corpo, inclusive em visões fálicas de máquinas penetrantes que passam a substituir sua carne.
O homem se torna cada vez mais inorgânico. Em pouco mais de uma hora de filme, o corpo humano perde sua sacralidade e passa a ser um meio para a tecnologia se desenvolver. Com isso, todos os aspectos mais repulsivos do ser tornam-se evidentes. Tsukamoto não tem medo do jovem twitteiro conservador e mostra como essa mudança da natureza corporal faz aflorar uma sexualidade fria e feia, até violenta, sempre acompanhada de sons metálicos desagradáveis. Tudo isso, da atração à rejeição, já fazia parte do corpo: a tecnologia apenas ressaltou aspectos que tentamos esconder o tempo todo.
Na ficção, a figura do ciborgue, ou do transumano, costuma ser representada sempre com muita assepsia. Pessoas com membros feitos de máquina, com fronteiras bem definidas, o corpo em sinergia com os aparatos tecnológicos em tons de azul-lâmpada-de-laboratório. Tetsuo é disruptivo por apresentar isso de outra maneira: a união da máquina ao corpo é dolorida, sangrenta, cansativa, angustiante, sexual. Ser transumano, para Tsukamoto, mais do que agregar a força da máquina em si, é ceder à fragilidade humana.
Em meio à fragilidade está o desejo, inclusive aquele que muito se luta para manter abaixo do nível da consciência. O assalariado tenta se relacionar normalmente com sua namorada, mas isso não é mais possível. Ele tem visões dela transformada também em híbrido, inclusive ostentando objetos fálicos que o penetram. De maneira geral, o prazer apresentado por Tsukamoto não é demonstrado pelo sexo, mas o filme possui uma sensualidade ligada à maquinização do ser, na apreciação de uma violenta colisão entre o homem e o metal, que se origina de um acidente de carro. Se isso não é cronenberguiano, nada mais é.
Aos poucos, o próprio filme perde fronteiras. Enquanto o metal toma posse do corpo do assalariado, o próprio material da imagem cinematográfica sofre diversas transformações. As técnicas de stop-motion, que evocam os filmes experimentais de Takashi Ito, atacam a fluidez dos movimentos, enquanto vários planos refilmados oferecem uma imagem degradada dos personagens. O fetichista de metal se une ao assalariado em corpo e mente, formando uma aglutinação de metais indiscerníveis que pulsam como um coração jovem.
Além da estética cyberpunk, a obra quase não possui diálogos, apenas música e efeitos sonoros ensurdecedores. A cinematografia preto e branco, juntamente com a atuação, a maquiagem e a iluminação exageradas, remete bastante ao cinema mudo. Assistir a Tetsuo, assim, pode ser um desafio para o público que não está acostumado com tanto experimentalismo. Fica a dica, porém, para explorar de outra forma a dor e o prazer que a tecnologia já nos traz todos os dias.
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