[Artigo] Beau tem Medo, mas também tem Patti LuPone
Atualizado: 26 de abr. de 2023
Beau tem medo, mas acima de tudo, Beau tem Patti LuPone e Parker Posey. As atrizes aparecem lamentavelmente pouco, ainda que com destaque. Não é spoiler; a motivação do protagonista vivido pelo ator de Sinais (2002), Joaquin Phoenix, é encontrar Patti LuPone e Parker Posey — me identifico. Porém, com 3 horas de duração, mesmo participações menores duram uma pequena eternidade, principalmente num filme tão indulgente quanto este dirigido e escrito por Ari Aster. Eventualmente, portanto, elas dão as caras e ficam em tela tempo o bastante para que Patti LuPone surja gritando com alguém (porque é o que a Patti LuPone faz), enquanto Parker Posey está à frente da cena mais sensual e descaralhada do projeto (porque, enfim, é o que a Parker Posey faz). Contudo, embora eu não tenha nada senão notas de repúdio para emitir sobre o assunto, é fato que Patti LuPone e Parker Posey não estão presentes em 80% das cenas de Beau tem Medo (2023), então preciso falar do resto.
Esse “resto” gira em torno de Beau (não vivido nem por Patti LuPone e nem por Parker Posey), um introvertido homem de meia idade metido em roupas muito largas que articula timidamente a voz fina e não sabe usar os próprios braços, parecendo assim uma criança alta e calva. Infantil também em suas preocupações, ele logo pergunta ao psiquiatra “Engoli um pouco de enxaguante bucal, será que posso ter câncer?”, e na sequência é tratado pelo médico como um pré-adolescente: “Se a água de um certo poço te fez mal, você voltaria a beber desse mesmo poço?”, pergunta o especialista, tentando explicar o conceito de autossabotagem através de metáforas muito básicas para que Beau consiga entender. Afinal, o protagonista habita a paródia de uma grande metrópole que faz jus à imaginação de um menino de 12 anos aterrorizado pelos muitos alertas dados pelos adultos; violência, criminalidade, punks tatuados, homossexuais, miséria e descaso literalmente rondam a porta de seu prédio, de onde ele precisa entrar e sair correndo para evitar facadas, invasores, pedintes, tiroteios e dançarinos na calçada logo em frente. Beau só sente-se seguro dentro de “seu” apartamento (que não é exatamente seu), mas é obrigado a deixá-lo quando chega o fatídico dia de visitar a mãe, Mona — essa sim, vivida por Patti LuPone (também por Zoe Lister-Jones, na versão mais jovem da personagem).
E com a perspectiva pueril de que pessoas estranhas estão sempre imbuídas de intenções malignas, e na qual as florestas são como aquelas de A Branca de Neve e os Sete Anões (1937), ao mesmo tempo assustadoras e mágicas, Beau é empurrado na direção da casa de sua mãe. Sim, empurrado, pois nenhum de seus avanços é intencional. Por mais que insista em dizer a todos que tem pressa, o protagonista só chega a algum lugar quando precisa fugir de outro. É o cara na banheira, a mulher enlutada, o veterano de guerra e outras ameaças que forçam ele a abandonar situações insustentáveis porque, afinal, Beau tem medo. E provavelmente, medo é tudo o que Beau tem, pois o resto pertence à Mona. É ela quem fornece comida, moradia e dinheiro para garantir a patética subsistência do filho, que por tal motivo, evita confrontá-la sobre os inúmeros e variados abusos que ele claramente sofreu nas mãos daquela mulher ao longo da vida. E por enxergar-se desde sempre como vítima, Beau cresceu acomodado no sentimento de impotência, usando isso como desculpa para não tomar decisões ou assumir responsabilidades.
Só que veja bem: não me sinto uma pessoa melhor que o personagem só porque consigo apontar esse comportamento nele. A verdade é que o arco de Beau me soa tristemente familiar; eu mesmo já fiz ninho em configurações semelhantes, e há não muito tempo, trabalhando para um dos piores seres humanos que já conheci, também percebi que estava acomodado na posição de vítima. Se de um lado passava por provações físicas, morais, psicológicas e emocionais, as quais nunca imaginei que seria exposto, por outro, todas as pessoas na minha vida sentiam pena de mim e, portanto, ninguém me cobrava nada — e o mais aterrador: nem mesmo eu me cobrava qualquer coisa. Família, projetos, amigos, amores, saúde, objetivos, viagens, carreira, tudo ficou em modo de espera ou em segundo plano sob a égide do abuso que eu estava sofrendo. Até o dia em que, carregado de raiva (da pessoa, mas também de mim), decidi desligar o telefone na cara do meu abusador e não mais atendê-lo. Atitude que foi acompanhada não de alívio, pra minha surpresa, mas de medo. Medo do que eu estava fazendo na hora, claro, e também medo de entender tudo o que viera antes, e de tudo o que viria depois. Abdicar de um emprego, por mais abusivo que fosse, me expôs aos mesmos perigos que espreitam a porta do prédio de Beau. Naquele momento, pude entender e me perdoar por ter encontrado conforto e comodidade na falta de controle sobre os rumos da minha vida, fugindo de um perrengue depois do outro até chegar em algum lugar, movido por nada senão medo.
Dito isso, essa é apenas a minha interpretação sobre os temas que o filme carrega, mas não acredito que Beau tem Medo seja um projeto de muitas metáforas. Na verdade, o contrário: considero sua narrativa bastante literal na maior parte do tempo — a exceção seriam os 10 minutos finais, mas chego lá num instante. Claro, a história traz elementos alegóricos e, mesmo se não trouxesse, leituras sempre são possíveis. Só não quero que a minha sobrepuje os simbolismos do longa-metragem, bastante herméticos; ou seja, funcionam em si mesmos. Na atual crise do debate online sobre Cinema e Arte, ora pautado por algum tweet estúpido, ora pelas análises cada vez mais pobres, básicas e desinteressantes (em forma e conteúdo) de grande parte da nata da crítica especializada (quando não são as duas coisas ao mesmo tempo), melhor deixar claro que não quero participar dessa disputa para ver quem tem a maior rola cinéfila — é muita gente tentando impor sua visão, ao invés discutir uma opinião. O que quero, aqui e agora, é falar de Beau tem Medo.
Aliás, me parece até que o Ari Aster brinca com essa mania que algumas pessoas têm de apresentar sua interpretação de um filme como se tratasse de um fato sobre o mesmo; é lá na cena da floresta, quando Beau senta para assistir a uma peça interativa e acaba se enxergando dentro dela. “Gostamos de confundir os limites entre os atores e o público”, diz um membro da trupe, logo antes do protagonista entrar numa longa abstração, cada vez mais convincente, na qual ele é o centro daquela narração. Crença que é comicamente destruída quando um dos atores pergunta a Beau sobre algo muito elementar que o impediria de viver aquela história. Seu delírio, acredito, não passa de outra tentativa de fuga, evitando as responsabilidades através da autoindulgência. Porque Beau tem medo, a única coisa que ele se permite é fugir, seja correndo, escapando pela tangente, ou se enfiando na própria cabeça. Ele permite se imaginar numa outra aventura, da mesma forma que se permite falar devagar e esperar que o psiquiatra lhe diga o que deve fazer; da mesma forma que se permite aguardar pela carona de Roger (Nathan Lane) e Grace (Amy Ryan); da mesma forma que se permite habitar um universo no qual a corporação industrial comandada por Mona é onipresente — o logo aparece em quase todos os produtos dos quais ele depende. Beau é um peixinho de estimação jogado no oceano; passou uma vida toda protegido, mas também preso; agora, está livre e à mercê das intempéries do mar aberto. Não deve ser por acaso, inclusive, que o sobrenome de sua mãe seja Wassermann, que traduzido do alemão, significa literalmente “aquário”. Acostumado à inércia de sua redoma de vidro, não surpreende que ele tente constantemente se acomodar outra vez, mesmo sendo empurrado de cá pra lá pelo caos do mundo, muitas vezes ficando paralisado num lugar só por várias horas até conseguir processar um novo acontecimento. E o filme faz questão de acompanhá-lo nesse seu ritmo permissivo, de modo que a longa duração do projeto (quase 3 horas) não só é repleta de eventos inusitados que são coerentes à confusão do personagem frente a uma realidade em que não pode contar com a mãe para protegê-lo, como também força o espectador a experienciar a envergadura de sua jornada. Admito, quando Beau finalmente chegou ao final do filme, me sentia tão exaurido quanto ele por causa da intensa e extensa viagem que nos trouxera até ali. E isso é um elogio.
Talvez tenham spoilers nessa última parte, pois quero falar do desfecho, quando o personagem de Joaquin Phoenix finalmente chega à casa da mãe e precisa enfrentar seus medos, literalmente subindo até o sótão, como se entrasse na própria cabeça, para recuperar memórias escondidas — tô dizendo, o filme pode até conter elementos simbólico, mas no geral, faz uso deles de modo bastante literal. Brilhante na cadência bizarra com que vai escalando a situação a partir de um reencontro aparentemente casual (Parker Posey, mothering), o roteiro de Ari Aster subverte expectativas com um encerramento simples para o conflito central da trama. Beau, enfim, reage e tem um pouco de agência sobre o rumo das coisas, dando um basta num sem-fim de abusos perpetrados por Mona. Para mim, foi como reviver aquela sexta-feira de manhã na qual encerrei a ligação na cara do meu ex-chefe e decidi não mais atendê-lo. O problema é que o enfrentamento não é o fim de um ciclo de abuso, mas o primeiro passo num processo de reconstrução pessoal. Posso ter cortado um abusador da minha vida, mas através do trauma, ele criou um avatar na minha cabeça, apropriando-se de autocensuras que eram minhas, mas que agora escuto serem ditas com a sua voz. Nesse momento, logo após o confronto, é quando ficamos mais vulneráveis e desesperados pela inércia, pelo conforto dela. Aí entra o risco de baixar a guarda e permitir que uma verdadeira tribuna inquisidora seja congregada internamente, proferindo julgamentos e sentenças que podem nos afogar em remorso. É essa armadilha auto-imposta que, para mim, Aster está ilustrando em seus 10 minutos finais de filme. Claro, nem todos nós temos a sorte de ter a Patti LuPone como avatar de culpa na psique.
BEAU IS AFRAID
2023 | EUA, Canadá, Finlândia | 179 min.
Direção: Ari Aster
Roteiro: Ari Aster
Elenco: Patti LuPone, Parker Posey, Joaquin Phoenix, Amy Ryan, Nathan Lane, Zoe Lister-Jones, Armen Nahapetian, Denis Ménochet, Kylie Rogers, Richard Kind, Stephen McKinley Henderson
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