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Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

[Crítica] A Morte do Demônio: A Ascensão — arroz, feijão e Evil Dead



Minha mãe fazia muitas coisas para mitigar a dureza da nossa realidade, e uma delas era imitar bichos. Sua performance de mosca é a minha favorita, porque ela inclui o detalhe espirituoso de esfregar as mãos da mesma forma que o inseto esfrega suas patinhas uma na outra. Sempre me fez rir. Podia não ser um lar perfeito, nos faltou muita coisa, mas graças a essas pequenas bobices, amor não foi uma delas. Dinâmica muito similar parece ocorrer na família de Ellie (Alyssa Sutherland), tatuadora e mãe solteira abandonada pelo marido, que a deixou sozinha para criar os três filhos; a politicamente engajada Bridget (Gabrielle Echols), o aspirante a DJ Danny (Morgan Davies) e a pequena e adoravelmente esquisita Kassie (Nell Fisher). O velho apartamento em que moram fica dentro de um prédio decadente, prestes a ser demolido, numa zona esquecida pelo poder público, mas que ainda assim exibe sinais de ser ocupado por pessoas que compartilham uma história e cumplicidade. No batente de uma porta, estão marcadas as medidas de altura das crianças ao longo dos anos; nos cômodos, inúmeros porta-retratos espalhados; e mesmo o modo como utilizam os espaços implica que os conhecem até de olhos fechados. A Morte do Demônio: A Ascensão (2023) faz, portanto, um esforço inédito nos filmes Evil Dead: apresentar personagens com os quais podemos nos importar e a quem não queremos que coisas horríveis aconteçam — tornado-o um filme especialmente cruel, porque logo em seguida, ele retoma a cartilha da franquia com a habitual matança, os desmembramentos, a chuva de sangue e a escrotidão sem limites dos demônios invocados, como sempre, pelo Necronomicon.


Aliás, um dos maiores elogios que posso fazer ao filme de Lee Cronin, é que ele não inova em quase nada, nem tenta reinventar a fórmula ou ser um marco na cinematografia de horror. A Ascensão mira no entretenimento gore, descompromissado e visualmente criativo que Evil Dead sempre foi, contentando-se em fazer o arroz com feijão bem feito. E embora comece brincando com o conceito da icônica câmera subjetiva empregada por Sam Raimi nos longas originais, usada para ilustrar a aproximação dos demônios, o filme logo abandona essas piscadelas e se entrega ao que deve ser, simultaneamente, um dos mais estúpidos e brilhantes exercícios de literalidade no cinema recente, introduzindo a cartela com o título do projeto acompanhada de um literal morto malvado (evil dead) subindo (rise). O novo A Morte do Demônio, portanto, não comete o erro de se achar “melhor” só porque pode se apoiar nas estruturas já prontas e deixadas pelos filmes anteriores — algo que Pânico 5 (2022) e 6 (2023) fazem, por exemplo (e digo isso mesmo gostando de ambos). Até a trama é muito simples (e curiosamente muito parecida com a de Venus, 2022, de Jaume Balagueró): Beth (Lily Sullivan) descobre que está grávida e decide buscar conselhos com sua irmã, mas percebe que se ausentou por muito tempo e perdeu acontecimentos importantes na vida de Ellie e de seus sobrinhos. Os jovens deixam as duas resolvendo suas tretas e acabam encontrando um livro macabro nos porões do prédio onde moram. Com ele, despertam entidades demoníacas que possuem o corpo de sua mãe, dando início a uma noite alucinante (pegou essa?).



Simples, mas eficiente. Sim, o preâmbulo de A Ascensão alicerça muito bem a família de Ellie como algo mais do que simples carne para o abate, mas também serve para estabelecer a atmosfera e os espaços que serão palco da carnificina subsequente. Saindo da cabana no meio do mato, agora estamos na periferia de uma grande metrópole. Não é mais a floresta que isola os personagens, e sim o descaso das instituições; tudo em volta é abandonado, falido ou condenado pela miséria. Mesmo antes do terremoto que prende os protagonistas dentro do prédio, eles já não podiam contar com a ajuda das autoridades e precisavam se virar sozinhos. E em contraponto às luzes quentes e acolhedoras do apartamento onde vivem Ellie e as crianças, os demais ambientes do edifício se apresentam hostis, repletos de obstáculos que poderiam frustrar uma eventual fuga daquele lugar; é o falho sistema da garagem, o caminhão de poda, a porta trancada que dá acesso às escadas de emergência, as tubulações no teto e por aí vai. Elementos que, de fato, são sistematicamente recuperados em algum ponto do filme, satisfazendo qualquer chato que gosta de ficar procurando furos de roteiro.



Mas ninguém assiste um Evil Dead pela cuidadosa construção de um centro emotivo ou por sua esperta ambientação; tratam-se de bônus bem-vindos, claro, mas aqui sentamos pra ver gente possuída falando baixaria e desferindo todo tipo de atrocidade corporal que os efeitos práticos e a maquiagem podem conceber — e pontos extras se for algo especialmente doloroso. Pois A Ascensão entrega tudo isso a contento. E mesmo quando segura um pouco as rédeas, é por um bom motivo, como na cena do corredor, que poderia ser mais… Visceral? Sim! Mas acaba trocando isso por uma abordagem inventiva e divertida que nos coloca para acompanhar o massacre pela perspectiva de um olho-mágico. Aliás, “divertido” é a palavra ideal. Enquanto o remake A Morte do Demônio (2013) se preocupava e era muito bom entregando a parte hórrida da franquia, este novo filme recupera mais do humor e sadismo mal-intencionado que Sam Raimi sabia dosar tão bem na trilogia original — ainda tô rindo da cena que reutiliza uma ideia de Lilo & Stitch (2002). E se acham que o momento protagonizado por um ralador é o mais dolorido de se ver, pois bem, espere até ver aquele que envolve uma taça de vinho.


E tal qual Evil Dead (1981) e Evil Dead II (1987) orbitavam o carisma de Bruce Campbell, A Ascensão tem como centro gravitacional a performance de Alyssa Sutherland, que usa seu corpo alto e magro para compor a fisicalidade retorcida e monstruosa de Ellie após a possessão demoníaca. Também abusando de um largo sorriso, ressaltado pela maquiagem que emagrece seu rosto, para insuflar a malícia da entidade sobrenatural. Enquanto isso, no time dos que ainda estão vivos, a pouca expressividade de Lily Sullivan como Beth é bem compensada por Morgan Davies, ator e pessoa trans que vive Danny com a energia e curiosidade necessárias para que não se ressinta o fato de ter libertado o Necronomicon. O livro maldito, aliás, acompanha também alguns outros itens obrigatórios da franquia, como a motosserra, que surge no clímax (surtado) logo depois de uma excelente referência a O Iluminado (1980), que não vou revelar para preservar a surpresa. E juntando todos esses ingredientes, o diretor e roteirista Lee Cronin serve um Prato Feito que enche a barriga, sem se preocupar ou perder tempo tentando ser uma experiência gastronômica sofisticada. E até nisso o novo A Morte do Demônio é fiel aos seus antecessores, que nunca ambicionaram mais do que oferecer uma saborosa sessão de meia-noite para se curtir embaixo das cobertas, ou com a galera num cinema lotado. Cronin preocupa-se com o que importa aos fãs e aos executivos: servir bem, para servir sempre. Agora, com licença, vou ligar pra minha mãe e dizer amo muito sua imitação de mosca.

 

EVIL DEAD RISE

2023 | EUA | 97 min.

Direção: Lee Cronin

Roteiro: Lee Cronin

Elenco: Alyssa Sutherland, Lily Sullivan, Gabrielle Echols, Morgan Davies, Nell Fisher, Jayden Daniels


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