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  • Foto do escritorPietra Vaz

Os horrores da solidão e da diferença em "Eu sou a Lenda" e suas adaptações

Atualizado: 15 de abr.

É curioso como, às vezes, filmes tornam-se mais famosos do que os livros que os originam,  quase a ponto de ofuscá-los. É o caso de clássicos como Psicose (1960), Duro de Matar (1988), O Silêncio dos Inocentes (1991), O Poderoso Chefão (1972) e, talvez em um degrau de menor prestígio cinematográfico, também é o caso de Eu sou a Lenda (2007).


O filme estrelado por Will Smith não apenas é baseado em um livro, como também é a terceira adaptação da mesma obra para os cinemas: as primeiras são The Last Man on Earth (1964), lançado no Brasil como Mortos que Matam e protagonizado por Vincent Price; e The Omega Man (1971), lançado no Brasil como A Última Esperança da Terra e tendo Charlton Heston como protagonista.


Os três filmes em ordem cronológica


Publicado inicialmente em 1954, Eu sou a Lenda foi escrito por Richard Matheson, autor estadunidense cuja pouca fama no Brasil não faz jus ao impacto de sua obra. Nascido em 1926, Matheson presenteou a humanidade com romances incríveis que logo se tornariam filmes de sucesso: Bid Time Return originou Em algum lugar do passado (1980); What Dreams May Come originou Amor além da vida (1998); The Shrinking Man originou O Incrível Homem que Encolheu (1957); Hell House originou A Casa de Noite Eterna (1973). Matheson também escreveu episódios de Além da Imaginação e Star Trek, além do roteiro de Duel (1971), dirigido por Steven Spielberg e lançado no Brasil como Encurralado.


Na época de sua morte, em 2013, Matheson foi homenageado por Stephen King, que evidenciou o quanto ele o inspirou enquanto escritor. King disse que ficou fascinado pelo fato de as suas histórias não se passarem em castelos soturnos nos confins europeus, nem em inexplicáveis universos lovecraftianos. Pelo contrário, os horrores de Matheson sempre estavam próximos, em cenários familiares e nomes conhecidos, crescendo sorrateiramente em meio a descrições que se encaixavam nas rotinas de seus leitores estadunidenses. Leitores de King sabem bem que ele abraçou com vigor essa possibilidade de trazer o terror para a realidade, afinal, o pequeno estado do Maine e suas cidades pacatas são figuras centrais no imaginário de seu horror.


Em entrevista concedida à editora Macmillan cinco anos antes de seu falecimento, Matheson demonstra ter uma visão diferente de si mesmo, afirmando até mesmo detestar o termo “horror”. O autor preferia pensar em si mesmo como um escritor de fantasia não convencional, afinal, já tinha se embrenhado por faroestes, romances de guerra e histórias de amor, além da ficção científica que resplandece em Eu sou a Lenda. O elemento comum de todas as suas criações, na visão do próprio Matheson, é que ele sempre parte do mundo que está ao seu alcance, independentemente do gênero da obra.


Richard Matheson


“Eu escrevo, sim, histórias assustadoras, mas eu penso mais em “terror”, não em “horror”. Eu sou um “aterrorizador” da vizinhança. Sou incapaz de — ou não quero nem tentar — escrever um livro como O senhor dos anéis [...] ou algo ambientado em um mundo completamente diferente. Eu simplesmente não me interesso por um lugar que não pareça real.”


É nesse sentido que o livro Eu sou a Lenda conta a história de um homem comum, em uma casa comum, com uma família comum e um emprego comum. Isto é, ao menos seria assim se o mundo não tivesse sido varrido por uma brutal pandemia que revirou sua vida. Seu nome é Robert Neville, e ele trabalhava como operário quando as primeiras notícias sobre uma doença misteriosa começaram a circular. Ele e sua esposa Virginia ficaram preocupados, especialmente com relação a Kathy, a pequena filha do casal. Perturbação por insetos e tempestades de areia tornavam-se cada vez mais comuns, provavelmente como consequência de bombardeios nucleares. Seria essa doença um tipo de arma biológica? Não poderia ser, pois a guerra já havia acabado… ou será que não? De qualquer forma, as autoridades não estavam conseguindo isolar o germe causador da doença. Será que deveriam mandar Kathy passar um tempo na afastada casa da avó, ou ao menos retirá-la da escola?


A família no último aniversário de Kathy, em Mortos que Matam (1964)


Essas angústias e incertezas compartilhadas entre marido e esposa são apresentadas aos poucos, aparecendo como memórias — às vezes acolhedoras, às vezes desoladoras — do mundo na iminência de uma pandemia. Poucos anos depois, Neville parece ser o único sobrevivente da peste, e passa seus dias em uma rotina pautada na mera manutenção de sua vida. Tudo o que ele faz é comer enlatados, ingerir bebidas alcoólicas, ouvir música clássica, perder-se em momentos de melancolia, fazer reparos diários em sua casa, pendurar alho nas portas e matar vampiros. Sim, pois os infectados por aquela estranha doença não apenas morriam, eles se transformavam em mortos-vivos com hábitos vampirescos, incluindo o nojo pelo alho, a repulsa por espelhos e a incapacidade de sair ao sol.


Neville passa as noites abrigado em sua casa, ouvindo e tentando não ouvir os vampiros chamando-o para fora e tentando invadir sua barricada engenhosamente improvisada. Durante o dia, sai para matar vampiros em seus arredores, sempre com muita atenção, registrando os acontecimentos em sua mente como um verdadeiro pesquisador, e observando o comportamento dos vampiros como se realizasse um estudo etnográfico — ao seu próprio modo. Tudo isso, movido pelo desejo de decifrar a lógica por trás da doença que não só dizimou a humanidade, mas que também tomou sua família.


Em suas desventuras diurnas, o sobrevivente procurava livros sobre Biologia, Química, Medicina, e qualquer outra disciplina que parecesse ser pertinente. Até o clássico Drácula de Bram Stoker passou pela sua análise — quem sabe o Dr. Van Helsing não teria algum ensinamento importante a compartilhar? Neville não era estudioso antes da pandemia, e acompanhar seus esforços para compreender as ciências naturais e formular suas próprias hipóteses é um exercício interessante. Tudo isso é desenvolvido por meio de um discurso indireto livre, em um vai e vem ansioso que equilibra passado, presente e futuro, enquanto o protagonista luta contra inimigos externos e internos. A cadência dos pensamentos de Neville é muito fluida, e por isso a leitura de Eu sou a Lenda corre facilmente.


“[...] enquanto eu servia no Panamá durante a guerra, fui mordido por um morcego-vampiro. E, ainda que eu não possa provar, minha teoria é de que o morcego encontrou anteriormente um vampiro verdadeiro e adquiriu o germe vampiris. O germe fez que o morcego procurasse humanos em vez de sangue animal. Mas, quando o germe passou para meu sistema, ele deve ter sido enfraquecido de algum modo pelo sistema do morcego. Isso me fez ficar terrivelmente mal, é claro, mas não me matou e, como resultado, meu corpo gerou uma imunidade a ele. De todo modo, essa é minha teoria. Não posso pensar em outro motivo.”


Juntando peça com peça, Neville descobre como a doença se espalha e se desenvolve no corpo humano, desvendando o motivo de os infectados terem seus corpos reanimados e de precisarem se alimentar de sangue. São explicações pouco verossímeis, que exigem boa vontade de quem lê para serem digeridas, especialmente quando são formuladas as teorias sobre aversão a espelhos e outras características dos vampiros que não podem ser subsumidas a células sanguíneas e gânglios linfáticos.


Sua rotina sistemática é interrompida de súbito quando, certo dia, ele encontra uma mulher caminhando em plena luz do dia. Embora ela tente fugir, Neville a alcança e consegue levá-la para sua casa. Seu nome é Ruth e ela age de maneira tão humana quanto ele, tendo até mesmo a pele bronzeada, indicando que ela caminhava sob o sol com frequência. Apesar disso, o homem não consegue confiar nela plenamente, talvez pelo choque de encontrar um outro ser humano depois de três anos vivendo a certeza de ser o único sobrevivente da peste. No fim das contas, seus instintos estavam certos: Ruth estava infectada. A mulher foge, não sem antes contar para ele que os infectados haviam aprendido a lidar com a doença, que estavam se organizando e que pretendiam matá-lo.


Ruth na adaptação do livro para os quadrinhos, escrita por Steve Niles

e desenhada por Elman Brown


Eu sou a Lenda é um livro subcutâneo, que prende pelos sentimentos de cansaço, tensão, compulsão e desesperança. Nem há tanta tristeza assim  —  ou melhor, quando a tristeza é retratada, ela sempre vem com uma boa dose de resignação, impedindo que o sentimento venha à tona completamente. Neville, claro, sente medo o tempo todo, mas parece estar tão entorpecido pelo isolamento que esse temor não provoca movimento. A única coisa que o faz agir, desviando por pouco de uma pulsão de morte, são suas obsessões.


Como qualquer ser humano totalmente isolado seria, Neville é um homem consumido pela solidão. E, por isso, em muitas passagens, seus pensamentos desesperados e impróprios são mais assustadores do que os ataques dos vampiros. A privação de sua sexualidade o leva a pensar nas mulheres vampiras de maneira lasciva e violenta, resultando em momentos desconfortáveis durante a leitura. Ele sempre realiza seus experimentos científicos — buscando a cura para o vampirismo, ou ao menos a forma mais eficiente de matar os vampiros — em mulheres, e tem consciência disso. Ele se pergunta o motivo daquilo, embora já saiba a resposta, mais ou menos explicitada ao longo do livro: é a forma mais aceitável que encontrou de possuí-las.


Com o fim da humanidade, foi-se também a ética, e Neville luta para manter sua moralidade, embora não encontre respaldo para isso no mundo. Ainda que seja imune à doença dos vampiros, ele acaba passando por processos próprios de desumanização. E, afinal, sendo o último homem na Terra, é seu dever manter-se bom? Essa luta pela decência, em termos que não fazem sentido para mais ninguém a não ser para ele, não tem como objetivo manter suas virtudes, mas sim reafirmar sua humanidade. Aliás, isso entra em conflito com o fato de que Neville busca também reafirmar sua hombridade — ele não é apenas o último ser humano, mas de fato o último homem.


Uma das edições portuguesas de Eu sou a Lenda, lançada em 1958, teve sua capa ilustrada por Lima de Freitas. O artista retratou Neville em meio a uma cidade destruída, em um cenário apocalíptico, e seu olhar dirige-se justamente para uma pilha de cadáveres de mulheres nuas.


Edição ilustrada por Lima de Freitas


No livro, segundo a bússola moral de Neville, é mais fácil descrever as mulheres vampiras como vulgares do que admitir que ele sente atração por elas, e matá-las é mais honroso do que estuprá-las. Curiosamente, quando encontra Ruth, Neville não sente atração física por ela, nem qualquer ímpeto sexual ou violento. Eles se abraçam e se beijam, em um momento de catarse no qual seus medos e angústias eram compartilhados e afugentados — e o protagonista até pensa que talvez a tivesse violentado se ela tivesse aparecido algum tempo antes. É uma possibilidade que Matheson joga para a mente de quem lê e mantém no ar, gerando tensão. Pode ser uma forma de demonstrar as expectativas que Neville tem em si mesmo de que sua natureza humana e seu gênero masculino, eventualmente, alcancem certo equilíbrio; ou uma forma de mostrar que demônios podem ser exorcizados mesmo nas mais insalubres condições; ou, talvez, uma demonstração de apatia, da inércia de seus sentidos.


Toda essa questão é apresentada de maneira muito incômoda, especialmente para o olhar feminino. Mas ela tem sua razão de ser ao explicitar a degradação vivenciada por Neville, a sua dificuldade de lidar com seus desejos sexuais, e principalmente a resistência do protagonista ao se ver inserido em um mundo com arranjos de poder totalmente diferentes dos anteriores. Descrito no livro como um homem branco alto, nascido em família anglo-germânica, com cabelos loiros e olhos azuis, e pai de uma família de classe média, Neville era um cidadão privilegiado que, de repente, passou a ser a última presa em um mundo de predadores.


Robert Neville e sua filha no filme Eu sou a Lenda (2007)


A descrição física de Neville pode surpreender aqueles que conhecem a história devido à adaptação cinematográfica de 2007, dirigida por Francis Lawrence e protagonizada por Will Smith. No filme, Neville é um homem negro, além de ser um cientista de alta patente militar. Essa mudança impacta toda a história, mesmo porque uma leitura da obra original pela perspectiva racial é inevitável. Nela, em certo momento, Neville discute consigo mesmo sobre a natureza dos vampiros, questionando se as necessidades deles são de fato tão mais revoltantes que a dos homens.


“Tudo o que ele faz é beber sangue. Então por que esse preconceito cruel, esse viés imprudente? Por que o vampiro não pode viver onde ele bem quiser? Por que ele deve procurar por lugares escondidos, em que ninguém possa encontrá-lo? Por que vocês querem destruí-lo? Vejam, vocês transformaram um pobre inocente sem maldade em um animal assombrado. Ele não possui meios para se sustentar, nem há medidas para garantir-lhe uma educação apropriada e, portanto, ele não possui o privilégio do voto. Não é de se admirar que ele seja compelido a procurar uma existência predatória noturna. Robert Neville grunhiu rispidamente. Tá bem, tá bem, ele pensou; mas você deixaria sua irmã casar-se com um deles? Ele deu de ombros. Nessa você me pegou, cara, nessa você me pegou.”


Esse trecho apresenta os vampiros como uma minoria social, relacionando-os com a desigualdade de moradia, renda, educação e com a privação do voto. Durante os anos 1950, nos Estados Unidos (contexto em que o livro foi escrito), essas eram algumas das maiores dificuldades sentidas pela comunidade negra do país. Neville reconhece o preconceito, mas não se importa de reproduzi-lo. Ele tem um argumento levantado automaticamente ao menor sinal de hesitação na sua luta contra os vampiros: eles são uma ameaça. Eles o cercaram, tomaram conta de tudo, e agora colocam em risco a sua existência. É um sentimento diretamente relacionado com o movimento de supremacia branca, que vê a conquista de direitos da comunidade negra como uma perda de direitos da população branca.


Novamente, porém, Neville cerca-se de nuance; ele passa o tempo todo se reafirmando perante os vampiros, e buscando tirá-los daquela condição terrível, pela cura ou pela morte. Eventualmente, ele descobre que os vampiros não são mais seres humanos infectados, nem monstros abomináveis. Passada uma conturbada fase de transição, aqueles seres haviam compreendido e abraçado a sua nova natureza, eram capazes de pensar e amar, e percebiam-se como vampiros que não precisavam ser salvos, muito menos mortos. Uma nova sociedade, com novas regras e novas instituições, estava sendo construída pelos vampiros.


E, de repente, tudo se inverte: Neville é o monstro. É ele que provoca o terror naquelas comunidades em formação, numa mistura de serial killer com cientista maluco. Ele é quem não consegue se sustentar, ele é quem se rende a hábitos predatórios. De fato, Neville está cercado por vampiros, mas eles não ameaçam a sua existência tanto quanto ele ameaça a deles. É uma ideia muito sutil, essa de que inexiste um lugar para Neville no mundo não pelo que os outros são, mas pelo que Neville é.


Nisso reside o ponto-chave para uma leitura queer de Eu sou a Lenda. Apesar de ter sido criado em uma cultura cisheteronormativa, e de agir de maneira adequada a essa realidade, Neville subitamente se torna o outro apenas por existir, e resiste em se ver dessa forma. Enquanto o mundo reivindica um viés contra-hegemônico, o protagonista é dissidente e busca a resistência. Ao mesmo tempo, é interessante notar a subversividade da população vampira, um  grupo que foge da caracterização como párias para se transformar no novo padrão. Em razão da narração focada nos pensamentos de Neville, é possível identificar no próprio texto a virada que questiona os regimes do padrão e do herético, e por causa de sua caracterização enquanto personagem, tem-se uma brilhante oportunidade de pensar um clássico do horror como uma ficção política, que questiona modelos sociais de gênero e sexualidade, para além de raça e classe.


Primeira edição do livro, publicada pela Walker and Company


No filme de 2007, essa mensagem de dissidência é radicalmente alterada, e não apenas porque Neville é representado como um homem negro e intelectual. O primeiro aspecto relevante é a forma como seus sentimentos foram modulados: por mais que ele esteja sempre desanimado, sempre há esperança. O Neville de Will Smith não se permite ser o outro: é determinado, não se entrega ao álcool e encontra força nas memórias de sua família. Sua filha chama-se Marley, em homenagem a Bob Marley, e as mensagens otimistas de suas letras, no ritmo alegre do reggae, ecoam em seu coração. Acertadamente, também neste filme os dilemas do personagem acerca de seus desejos sexuais e pensamentos de violência foram apagados, afastando estereótipos racistas atribuídos à masculinidade negra. Esse mesmo Neville também desiste de matar os infectados — que são muito mais zumbis do que vampiros — porque percebe que eles sentem afeto entre si, assim como ele sentia afeto por sua esposa e sua filha. Ele não desiste, contudo, de encontrar a cura — na verdade, ele elabora uma cura a partir de seu próprio sangue.


A cura é entregue a Anna, personagem interpretada por Alice Braga, que encontra Neville enquanto ia para uma colônia de sobreviventes. Junto com seu filho, ela consegue escapar levando a descoberta de Neville, enquanto o cientista acaba tendo que se sacrificar para que a cura seja salva e compartilhada. Assim, ele torna-se a lenda por ter sido um mártir, que salvou a humanidade da extinção quando as chances perante os monstros eram tão pequenas. Assim como Bob Marley, Neville deixa uma mensagem de paz, abrindo mão da própria vida em prol de causas muito maiores.


Alice Braga em Eu sou a Lenda (2007)


Essa mudança no final é importante para reafirmar o compromisso desse novo Neville com o fim do racismo e do ódio — fazendo por meio da ciência a mesma coisa que Bob Marley fazia por meio da música, como o próprio personagem comenta com Anna. Contudo, perde-se o elemento mais importante de toda a história de Matheson, que é o que o torna um clássico: reflexões sobre o que é normal e anormal, o que é indivíduo e o que é sociedade, o que é pertencimento e o que é medo. O filme de 2007 termina com um tom de esperança que em nada combina com a história original, e por isso arruína seu charme.


Nos momentos finais do romance, Neville se rende à sua nova condição no mundo:


“Naquele momento, pensou: eu sou o anormal aqui. Normalidade era um conceito de maioria, um padrão de muitos e não o padrão de apenas um homem. Aquela percepção veio abruptamente com o que ele viu em seus rostos — temor, medo, horror recolhido —, e ele sabia que eles estavam com medo dele. Para eles, Neville era algum flagelo terrível nunca antes visto, um flagelo ainda pior que a doença com a qual eles agora tinham de conviver. [...] E Neville compreendeu o que eles sentiam e não os odiou.”


Na obra de Matheson, Neville aceita o fim de sua vida não como um mártir apegado a seus valores, mas como alguém que simplesmente não tem mais opções a não ser se conformar com a realidade. Num mundo em que a hegemonia virou de cabeça para baixo, e em que a resistência alheia foi vitoriosa, não resta opção que não seja sucumbir. Reside nisso mais da força queer do livro: não se pode compreender identidades de modo isolado; pessoas e seus corpos sempre são classificados em comparação entre si conforme demanda a organização material da vida.


Nesse sentido, também é interessante notar como a primeira adaptação cinematográfica, Mortos que Matam, alterou a trama. Na época, o filme quase foi produzido pela famosa produtora britânica Hammer Film Productions — decerto, se fosse o caso, o último homem do planeta seria Peter Cushing, e não Vincent Price —, mas o roteiro não passou pelo crivo do British Board of Film Classification, organização não governamental responsável pela classificação e censura de filmes no Reino Unido.


Vincent Price é o sobrevivente na primeira adaptação cinematográfica


O filme acabou resultando de uma produção ítalo-estadunidense, tendo como diretores Ubaldo Ragona e Sidney Salkow. A primeira opção para a direção, na verdade, havia sido Fritz Lang, mas impasses na pré-produção fizeram com que isso não se concretizasse. Matheson relatou que, quando ficou sabendo da troca de diretores, logo pensou, sarcasticamente: “Bem, essa é uma pequena queda de nível!”


Embora Matheson tenha reconhecido que essa primeira adaptação era a mais fiel ao seu livro, ele a descreveu como inepta. Depois de assistir ao filme pela primeira vez, o autor pediu que seu nome fosse substituído por um pseudônimo nos créditos do roteiro, tamanho o descontentamento. De fato, a adaptação é bem literal, mas demasiadamente seca. Os impulsos violentos e grosseiros do protagonista são praticamente anulados. Price interpreta Robert Morgan (não foi mantido o sobrenome Neville) um tanto mais firme, vivendo momentos de tristeza e medo todos os dias, mas sem jamais ser consumido por esses sentimentos. Soma-se a isso o fato de ele também ser um cientista, e o resultado é um protagonista um pouco mais seguro e um pouco menos desesperado do que o ideal.


No final de Mortos que Matam, Morgan é perseguido pelos infectados e encurralado dentro de uma igreja católica, recebendo um golpe fatal bem no centro do altar. Ele cai no chão após gritar que é um homem, o último homem, e que todos aqueles que o cercam são aberrações. E, logo antes de morrer, comenta, um tanto consternado: “Eles estavam com medo de mim…”. A cena demonstra o que o filme já indicava o tempo todo: Morgan sentia orgulho por ser o único sobrevivente, e não desespero. Porém, não há como desenvolver esse raciocínio e torná-lo tão complexo quanto faz Matheson no livro. É uma pena, porque essa inversão de polos do medo é o que torna Eu sou a Lenda tão sagaz.


Morgan atingido no altar


Além disso, a morte no altar da igreja carrega um gritante simbolismo religioso. No romance, Matheson afasta a centralidade da religião, e especialmente do cristianismo, por meio dos experimentos e das teorias mirabolantes de Neville. O protagonista do livro observa que a cruz é, sim, um símbolo eficaz contra os vampiros, mas só contra aqueles que eram cristãos em vida. Professantes de outras fés sentiam repulsa pelos objetos que representavam a divindade em suas respectivas religiões, rompendo com a supremacia da cruz como instrumento universal de combate aos vampiros — um tropo muito comum na cultura pop. Assim, a aversão pelos símbolos religiosos seria um fenômeno psicológico, assim como o medo de espelhos, que seria oriundo de uma “cegueira histérica” perante os objetos — como já foi observado, as teorias que Matheson imputou a Neville não eram das mais razoáveis.


O interessante disso tudo é que a religião é inserida em um campo totalmente subjetivo. Neville não era um homem religioso mesmo antes da pandemia; até durante a crise da misteriosa doença, ele julgava as pessoas que se rendiam à religião para encontrar um conforto rápido em meio àquela realidade incompreensível, como se aquilo fosse um tipo de escapismo.


Há um momento do livro, porém, no qual Neville cede à crença no Deus dos cristãos. Trata-se de quando ele, desesperançoso como sempre, surpreende-se ao encontrar um cachorro na rua. O animal estava frágil e amedrontado, mas não infectado. O homem passou dias mergulhado em ansiedade, conquistando a confiança do cachorro aos poucos, ávido por poder acariciá-lo, abraçá-lo, criar um laço afetivo com um ser vivo novamente; mas o cão estava muito hesitante, provavelmente devido aos encontros que tivera com vampiros.


O cachorro na adaptação do livro para os quadrinhos


“E, a cada dia, sentava-se um pouquinho mais perto dele, até que chegou o momento em que podia alcançar e tocar o cão, se ele se esticasse um pouquinho. No entanto, não o fez. Eu não vou arriscar, disse a si mesmo. Eu não quero assustá-lo. Mas era difícil manter as mãos paradas. Quase podia senti-las se contraindo empaticamente com o intenso desejo de alcançar e afagar a cabeça do cão. Ele tinha uma ânsia tão terrível de amar novamente alguma coisa; e o cachorro era tão maravilhosamente feio.”


Foi assim que Neville abandonou o desdém pela religião, ainda que só por um momento, e flagrou-se orando pela proteção do cachorro nas ruas, pedindo para que ele conquistasse logo sua confiança, para tê-lo como companheiro. Sua vida girava em torno daquele infeliz cãozinho, e por isso sua autocensura não foi suficiente para que ele deixasse de rezar. Eventualmente, depois de muito esforço, Neville consegue levar o cachorro para dentro de casa, mas ele ainda estava desconfiado e sentia dificuldades para se acostumar com aquela nova situação. Ele chorava muito, e logo Neville percebeu que, além de assustado, o animal estava doente. E então, poucos dias depois, o cachorro morreu.


O fato de o cachorro ter aparecido apenas para morrer logo em seguida é muito cruel, e muito mais doloroso do que a forma como o mesmo animal foi retratado no filme de Will Smith. No caso, o cão era o pet de Neville e sua família antes da pandemia, e morre defendendo o dono dos infectados após anos sendo seu único companheiro. É, sim, muito triste, mas é pungente o sentido literal da perda de um amigo, de um elo com sua vida anterior. Na situação apresentada no livro, a perda do cachorro é um símbolo cru para a perda da esperança. Não é uma mudança na vida de Neville, mas sim a ausência da mudança: a reafirmação do status quo de desespero e solidão em sua vida, fortalecendo a pulsão de morte.


O cachorro, no romance, também simboliza um lapso de fé que não resistiu à brutalidade do mundo de Neville. De fato, religião e fé não são elementos importantes no livro de Matheson, mas quando aparecem, são inúteis e geram mais sofrimento. Essa é uma das características mais interessantes e ousadas da obra, e foi subvertida em todas as adaptações para o cinema.


A Última Esperança da Terra, de 1971, teve sua produção semeada na mente de Charlton Heston quando este leu a obra de Matheson. O ator conferiu a única adaptação existente à época (a de Vincent Price) e a achou “incrivelmente malfeita, nem um pouco assustadora, mal-atuada, mal escrita e fotografada”. Considerando a dureza de sua crítica, a versão estrelada por Heston, dirigida por Boris Sagal, deveria ter sido primorosa, mas não é bem o caso. De fato, muitos consideram seu filme o mais interessante de todos os baseados em Eu sou a Lenda, mas ele também não constrói a mesma atmosfera tensa que pesa o texto original.


Robert Neville, interpretado por Charlton Heston, em um anoitecer comum


O Neville de Heston é simplesmente um badass. Sua postura é a de quem se sente bem consigo mesmo, apesar de alguns lapsos de loucura espalhados aqui e ali, mais para lembrar o público de que ele está sofrendo do que realmente mostrando o sofrimento. Ele está sempre trocando de carros esporte, invadindo lojas para renovar seu guarda-roupa, indo passar o tempo nos cinemas abandonados, empunhando armas como quem gosta de (e não como quem apenas precisa) atirar nos infectados. Estes, por sua vez, são um conceito à parte: organizam-se de forma litúrgica, entoando cantos e respostas em uníssono ao seu líder, e estão sempre uniformizados com trajes pretos como monges. Eles se denominam A Família e foram deliberadamente inspirados no culto de Charles Manson.


Os líderes d’A Família


Também nessa adaptação, Neville acaba descobrindo que não é o único sobrevivente. Ele conhece Lisa, que nesse caso é de fato uma mulher humana, e juntos eles constroem uma relação de amizade e até amor. Ambos são cheios de personalidade, e os demais sobreviventes que vivem em uma pequena colônia com Lisa também transmitem tenacidade e determinação. A história torna-se um clássico embate nós versus eles, sem nuance alguma, sem a pegada de ostracismo e solidão. Esperança e força marcam o filme, que também possui diversos momentos de comédia e sequências glamourosas de ação. Seu subtexto é muito apegado aos valores estadunidenses: a misteriosa doença é oriunda de uma guerra entre Rússia e China, uma representação óbvia dos outros.


Em determinado ponto, o Neville de Heston é capturado pelo culto dos infectados, e é amarrado na pose de crucificação. No final, assim como Will Smith, ele se sacrifica como um mártir, e é seu sangue a chave para a restauração da humanidade. É lamentável notar que todas as adaptações reintegram a centralidade do simbolismo cristão e tornam Neville um personagem messiânico, enquanto uma das características mais interessantes do romance de Matheson é a subjetividade da religião.


A semi-crucificação de Neville em A Última Esperança da Terra (1971)


As questões de raça e gênero não são apresentadas da maneira como o livro faz. No filme, Lisa é uma mulher negra, interpretada por Rosalind Cash, e o beijo entre ela e Neville será sempre lembrado como uma das primeiras cenas de beijo — e sexo, apesar de não explicitamente — entre pessoas de diferentes raças no cinema. Uma das roteiristas do filme (e doutora em Química!), Joyce Corrington, disse que Lisa foi criada devido à influência do movimento Black Power, que estava em ascensão quando o filme começava a ser produzido.


A importância da raça no filme é justamente a presença natural de personagens negros, que possuem nomes, vontades e agência. A mensagem, assim, é no sentido da igualdade racial, tendo sido transmitida não por provocações do roteiro ou por reflexões de Neville, mas sim pelos próprios negros ao participarem com assertividade da construção da história, e de terem sobrevivido por anos sem Neville por sua própria competência. Assim, apesar de a reflexão racial nos moldes do livro ter sido esvaziada, o filme tem seus méritos ao apresentar a questão de outro modo, mais explícito.


O famoso beijo entre Charlton Heston e Rosalind Cash


Na época, Charlton Heston era um conhecido democrata, e na década seguinte, os anos 1960, viria a ser grande apoiador da Lei dos Direitos Civis e de Martin Luther King Jr. No final dos anos 1980, porém, tornou-se republicano e passou a defender a existência de uma guerra cultural que glorificava o orgulho negro e hispânico e desqualificava o orgulho branco. É interessante pensar que se A Última Esperança da Terra tivesse sido produzido vinte anos depois, ele provavelmente seria mais conservador e menos diverso, o que contraria as expectativas de evolução linear de representatividade e conquista de direitos por parte das minorias sociais.


I am Legend, de Stanley Meltzoff


Depois de muita investigação em Eu sou a Lenda de Richard Matheson e suas adaptações cinematográficas, a conclusão talvez já esteja óbvia. Nenhum filme reproduziu o impacto emocional do livro, e o mais frustrante é que, aparentemente, nenhum deles sequer tentou fazer isso. Todos retiraram do romance a premissa do homem que está sobrevivendo no mundo sob circunstâncias extraordinárias, mas, cada um ao seu modo, todos retiraram a feiura que a solidão, o isolamento, a depressão, as obsessões e o desespero provocam no ser humano.


Os filmes erram ao retratar Neville como um homem bom. Neville não é bom, ele só é normal. Ele não é um mártir, não é messias, não é corajoso. Ele está apenas seguindo com sua vida dia após dia, convivendo com pensamentos terríveis, tentando não sucumbir. Por meio de seu protagonista, Matheson lembra seus leitores de que os seres humanos sentem um desejo incessante de suprimir a diferença, desumanizar os inimigos e erradicar o incompreensível. A leitura termina com a pesada constatação de que a humanidade é patética, embora pareça ser tão indestrutível.


Os filmes limpam os pensamentos inadequados de Neville para longe das telas, deixando de lado uma fração importante das reflexões sobre a natureza humana propostas por Matheson. Além disso, todos representam Neville como o salvador da humanidade. Isso restaura aquilo que o próprio livre propõe subverter; é como se os produtores não tivessem lido suas últimas páginas. E ainda que o filme de 2007 possua um final alternativo, mais alinhado com o livro, é uma pena que muito da história tenha sido desnecessariamente higienizada. Por mais que possam ser boas fontes de entretenimento, não fazem jus à obra original.


Quem lê passa o tempo todo pensando que Neville era a lenda porque havia sobrevivido, mas no final descobre, junto com o protagonista, que ele era a lenda porque causava terror nos vampiros: matava seus parentes enquanto dormiam, torturava seus amigos, impedia que aquela nova sociedade se organizasse em paz. E, no fim das contas, não havia motivo para que ele saísse matando os vampiros como fazia. Será que ele acreditava ser capaz de, no futuro, com muito empenho, matar todos eles? Ou é simplesmente bom aniquilar o outro, mesmo sabendo que nunca vai ganhar essa batalha de fato? Neville não é a lenda porque é um herói. Muito pelo contrário, ele é a lenda porque é um algoz.


Tantos anos após o fim do Código Hays, será que o grande público ainda não está pronto para assistir a um filme que aponta para a fragilidade existencial do ser humano? Um filme sem medo de abraçar o subtexto queer do livro, talvez? Só resta aguardar que algum produtor ousado decida adaptar o livro retratando Neville como o bicho-papão dos vampiros, e reler a obra-prima de Matheson enquanto isso.




 
REFERÊNCIAS

I Am Legend as American Myth (Amy J. Ransom)


Science Fiction Stars and Horror Heroes: Interviews with Actors, Directors, Producers and Writers of the 1940s through 1960s (Tom Weaver)


Fixing Ground Zero: Race and Religion in Francis Lawrence’s I Am Legend (Michael E. Heyes)


Tribute to Richard Matheson (Stephen King)


The Last Man On Earth (1964)


Before I Am Legend: The Omega Man (IGN)


In the Arena: An Autobiography (Charlton Heston)


Leitura queer: um ato de resistência e alteridade (João Pedro Wizniewsky Amaral)


Entrevista de Richard Matheson concedida à Editora Macmillan - Material de apoio da edição de Eu sou a Lenda da Editora Aleph.

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