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[Rebobinando] Exorcizando 'O Exorcista': A Anti-Continuação de John Boorman

Foto do escritor: Matheus MarchettiMatheus Marchetti


Sejam bem-vindos ao [Rebobinando], a coluna do Esqueletos no Armário que te levará de volta aos tempos de locadora para tirar a poeira do VHS (ou do DVD) e revisitar alguma obra, seja ela um clássico memorável ou uma pérola esquecida que precisa de um pouco mais de carinho. Chega junto, liga a tv e não se esqueça de rebobinar antes de devolver!

 

O lançamento de Amargo Pesadelo em 1972 reforçou o britânico John Boorman como um dos cineastas mais requisitados da Nova Hollywood. O horror visceral tão vividamente retratado em seu “thriller caipira” seria ideal para uma adaptação cinematográfica do romance O Exorcista, de William Peter Blatty. Surpreendentemente, porém, Boorman teria negado a oferta por não se sentir confortável em rodar cenas tão violentas com uma criança. William Friedkin tomou as rédeas do projeto, e o resto é História.

Foi exatamente esse desconforto com o material que, alguns anos mais tarde, inspiraria Boorman à realizar uma continuação do mesmo. O sucesso sem precedentes do filme de Friedkin, somado à credibilidade de Boorman enquanto realizador, lhe garantiu total controle criativo e uma verba astronômica para fazer o que bem entendesse com o material (a marca Exorcista era o suficiente para garantir um bom lucro, independente do conteúdo), e foi isso o que ele fez… um contraponto à tudo aquilo que o afastou do projeto em primeiro lugar.


O trágico exorcismo de abertura

Quatro anos após seu exorcismo em Georgetown, Regan MacNeil (Linda Blair) mora em Nova York sob os cuidados da Dra. Gene Tuskin (Louise Fletcher), criadora de um “sincronizador” que permite ao psicólogo se infiltrar na mente do paciente. Quando o Padre Lamont (Richard Burton) surge em busca de respostas sobre a morte misteriosa do Padre Merrin (Max Von Sydow) em 1973, ele se junta à Tuskin para entrar na mente de Regan e desbloquear suas memórias reprimidas. Através do sincronizador, Lamont assiste a morte de seu mentor nas mãos do demônio Pazuzu, mas a resposta que buscava vem com um preço: ao acessar os cantos obscuros do inconsciente de Regan, eles acidentalmente despertam as forças maléficas dormentes na garota. Para confrontar Pazuzu de uma vez por todas, Lamont parte então numa jornada até os vilarejos mais remotos da África, buscando o auxílio de Kokumo (James Earl Jones) - um curandeiro que, quando criança, também havia sido possuído pelo demônio e exorcizado por Merrin.

O exorcismo de Kokumo num passado tão distante, se confunde com a realidade de Regan no presente.


Não há cabeças giratórias, vômito verde, ou menores de idade se masturbando com crucifixos em Exorcista II: O Herege. O elemento do horror, pelo menos na sua forma mais tradicional, se dissipa dando espaço para um épico misto de fantasia e ficção científica - o hiperrealismo frígido de Friedkin é exorcizado por completo, substituído por um surrealismo mágico que beira os delírios metafísicos de Jodorowsky.

Essa abordagem radical enquanto continuação remete também ao que Val Lewton havia feito em A Maldição do Sangue de Pantera (1944). Mesmo sendo uma sucessão direta do seu Sangue de Pantera (1942), inclusive trazendo de volta o elenco principal, Lewton reconfigura a narrativa não mais como um “filme de terror” do modo convencional, e sim como uma delicada fábula infantojuvenil. Até a tal mulher-gato de Simone Simon não é mais apresentada como um símbolo de pavor, e sim como uma figura materna e protetora da protagonista mirim, um anjo da guarda.


Ícones do Horror Reformuladas: a Mulher Pantera (Simone Simon, esq.) e a Menina Demônio (Linda Blair, dir.)

Temos aqui uma desconstrução total do ícone Linda Blair, não mais a personificação do Diabo, e sim, uma espécie de Cristo reencarnado - um anjo na terra com poderes de cura, seu martírio no primeiro filme como um castigo pela sua bondade. Mesmo nos flashbacks em que ela é vista na clássica maquiagem de Dick Smith, a Regan do passado é bem claramente interpretada por uma dublê, despindo Blair de qualquer ligação com a infame garota-demônio que consagrou e destruiu sua carreira em igual proporção.

Há quem diga que Boorman completamente ignora o universo criado por Friedkin (e de fato, ele lutou para que o título fosse apenas O Herege, cortando laços diretos com o nome Exorcista), mas assim como Lewton, ele deixa bem claro que sua sequência se passa no exato mesmo mundo que o antecessor, recriando fielmente locações e momentos marcantes do original, mas apresentando-os por outro prisma, brincando com toda a sua simbologia. No primeiro, estamos sempre no plano da realidade, vendo de fora a possessão e degradação de uma garotinha inocente. Aqui, do momento que o sincronizador é introduzido até os minutos finais, estamos vendo esse mesmo mundo na perspectiva de uma mente possuída, por dentro dos sonhos compartilhados dos nossos protagonistas - sejam vivos ou mortos, homens ou insetos, anjos ou demônios.


A praga dos gafanhotos como símbolo de Pazuzu

No momento que Hollywood estava mirando o Futuro com uma nova abordagem cinematográfica, Boorman mira a Hollywood do passado para entender o Futuro. Um artista visual herdeiro do cinema hiperestilizado e operístico de Michael Powell e Emeric Pressburger, ele recusa o “guerrilha chic” do seu próprio Amargo Pesadelo e abraça tudo que uma megaprodução da Warner pode oferecer - o poder de viajar o mundo dentro dos confins de um estúdio (das planícies da África e uma favela na América do Sul, ao Vaticano e os arranha-céus de Nova York) se esbaldando na artificialidade de cenários majestosos e irreais, pois eles reforçam um senso do onírico… a abstração do inconsciente (de forma bem direta inclusive, como o consultório bizarro de Tuskin, no formato de uma colmeia). Mesmo os figurinos fogem do naturalismo, pegando o que era mais mais anos 70 da moda setentista e aplicando uma atemporalidade que os torna tanto antiquados quanto futuristas, a colisão entre passado-presente-futuro sendo um tema recorrente dentro da obra. O figurino não é apenas uma representação da personalidade de cada figura, é um símbolo que reflete sua alma, seu estado de espírito. Seja na cenografia como na roupagem, a paleta de cores barra quase por completo tons verdes e azuis - cores que remetem à natureza, à Terra, permitindo uma certa sensação de conforto - nos tirando do “plano terrestre” e puxando cada vez mais pra um estado de sonho febril.


De prédios futuristas em Nova York (esq.) à vilarejos secretos no coração da Etiópia (dir.), a cenografia de Richard Macdonald molda um panorama de paisagens de sonho.



Essa apresentação do horror quase como uma grande ópera estava completamente fora de moda nos Estados Unidos, mas ainda se mantinha firme e forte na Europa, principalmente na Itália. Há muitos elementos em comum com outro clássico incompreendido sobre possessão demoníaca, O Anticristo de Alberto De Martino - por sua vez, uma espécie de refilmagem italiana não-autorizada d’O Exorcista, com um rico universo imagético que parece um rascunho pro que Boorman iria eventualmente aperfeiçoar em 1977 (De Martino opta por uma perspectiva bem mais conservadora sobre a Igreja Católica, enquanto Boorman tem uma visão esotérica mais complexa e desapegada das instituições religiosas). O gênio Ennio Morricone assina a trilha sonora de ambos os projetos, mas incorpora elementos sonoros distintos em cada um - composições mais minimalistas para órgão (a Igreja, a Luz) e viola (o instrumento do Diabo) no primeiro; e algo mais grandioso com orquestra e coro para o segundo, passando do lírico ao canto tribal - um dos trabalhos mais belos do mestre. Coincidentemente, até a mesma imagem promocional foi utilizada para ambos os filmes - uma garota sentada na cama de frente à uma janela aberta, tal qual a Regan de 1973. Será que O Herege teria mais sucesso se lançado como O Anticristo Parte 2?


Esq: Cartaz para lançamento americano de O Anticristo / Dir: Cartaz descartado para O Exorcista II

O inevitável fracasso da tão antecipada sequência colocou a franquia na geladeira por pouco mais de uma década. Um terceiro Exorcista, dirigido pelo próprio Blatty, veio em 1990 como uma adaptação do seu livro Legião - canonicamente, a verdadeira continuação para seu famoso romance de possessão. O Exorcista III ganhou muitos admiradores ao longo dos anos, sua icônica “cena do corredor” consagrada como um dos melhores jump-scares da história, e hoje é tido pelos fãs como um clássico tão bom quanto (ou talvez até melhor que) seu original. Comparações com a Parte 2 eram inevitáveis, e apesar deste ter tido o apoio de nomes como Martin Scorsese e Pauline Kael, o terceiro ainda é visto como um bem-sucedido conserto dos erros de seu predecessor, inclusive por supostamente “ignorar” os eventos deste. O que Legião faz não é necessariamente ignorar O Herege, mas sim focar em outros protagonistas que não haviam sido abordados na primeira continuação (enquanto um explora o que aconteceu com Regan e o Padre Merrin, o outro trata do Padre Karras e o Detetive Kinderman), complementando mais do que apagando a narrativa anterior. No fim, há muito mais em comum entre eles do que se imagina.


Jason Miller como o Padre Karras em O Exorcista III (William Peter Blatty, 1990)

O tema principal de Boorman, na verdade, volta diretamente pro próprio Blatty, ambos se inspirando na figura de Pierre Teilhard de Chardin - um jesuíta e filósofo francês que serviu de base para a criação do Padre Merrin. O roteirista William Goodheart usa as teorias de Teilhard de Chardin como base para toda a narrativa do filme, especialmente a ideia de uma “mente universal” - o inconsciente de cada um de nós eventualmente, inevitavelmente, interligados pela união da ciência com a religião - algo que pode nos levar à grande elevação espiritual, ou à total degradação e autodestruição da humanidade. Esse conceito, referido direta e indiretamente diversas vezes no desenrolar da trama, é algo que talvez não tinha tanto peso para o público de 77, mas vendo como a sociedade está migrando cada vez mais para uma vida quase 100% digital onde tudo é compartilhado e os limites para ética na ciência da tecnologia estão quase sumindo, o horror do filme parece palpável e real hoje mais do que nunca. Há algo de extremamente profético na sua tese sobre a linha tênue entre fé e razão, como a falta de espiritualidade no mundo secular cria uma falsa sensação de segurança quando no fim estamos todos à mercê da mesma escuridão. Bem e Mal são conceitos que transcendem barreiras entre culturas e crenças, pois se originam num lugar muito mais primitivo e obscuro, algo que se esconde - como Pazuzu em Regan - nas profundezas da alma de cada um. Mas se Friedkin acha que há mais Mal no universo e na humanidade do que Bem, Boorman é mais otimista: ele crê piamente que o poder da bondade ainda prevalece, que ainda existe muita Luz dentro de cada um de nós para evoluirmos enquanto civilização, basta termos coragem de enfrentar as Sombras. E irônico que Blatty se oponha tanto a Boorman, quando essa também é essencialmente a mesma tese do seu primeiro longa (e sua obra-prima) A Nona Configuração - um spin-off d’O Exorcista impossível de se categorizar - e que ressurge, mesmo que de forma diluída, em Legião.


Mentes interligadas: sonho e realidade, passado e presente em contato direto

Há muito o que celebrar no fato que uma franquia de terror conseguiu atrair alguns dos diretores mais autênticos e celebrados da sua geração para dirigir cada segmento. William Friedkin, John Boorman, Paul Schrader (responsável pela prequel Dominion), e até mesmo Blatty - que em apenas dois filmes a seu crédito demonstra um talento para a câmera tão impressionante quanto seus contemporâneos. Você tem quatro grandes realizadores explorando as mesmas indagações espirituais, cada um com sua visão e sua assinatura muito particular. A tentativa de colocar um contra o outro (seja Friedkin versus Boorman, ou Blatty versus os dois) é tão fútil quando se tratam de filmes complementares em suas diferenças narrativas e estéticas. Justamente por isso, eles ficam mais fortes quando unidos, criando talvez a mais plural, complexa, e artisticamente rica franquia de gênero já criada por um conglomerado.

O Exorcista II foi um dos últimos exemplos de um grande estúdio dando total controle criativo ao seu diretor, e depois se arrependendo. Paul Schrader e William Peter Blatty, ao contrário de Boorman, não tiveram esse luxo, e suas visões artísticas foram extremamente comprometidas por interferência executiva (metade do terceiro foi regravado por Blatty à pedido dos produtores para inserir cenas de exorcismo que não estavam presentes no livro original, e a prequel de Schrader foi refilmada do começo ao fim por Renny Harlin com outros atores e um roteiro novo). Muitos inclusive usam O Herege como exemplo do porque não dar tanto poder nas mãos de um diretor; citando inconsistências de roteiro, diálogos ridículos, e atuações duvidosas como evidências do crime. Não que ele esteja absolvido dessas acusações, mas há tanta ambição criativa em jogo, um sentimento tão cativante de rebeldia e total liberdade artística que transcende qualquer “falha” que ele possa ter dentro de um padrão crítico tradicional (e limitado). Num mundo em que as mega-produções Hollywoodianas, principalmente as continuações e reboots, são cada vez mais feitas por robôs (e para robôs?) completamente desprovidas de alma e autenticidade, é revigorante ver um grande realizador no auge do seu poder criativo usufruindo ao máximo das regalias que uma produção desse porte podia proporcionar. Nenhum outro filme de terror de estúdio foi tão longe ou tão ambicioso desde então, e por bem ou por mal, talvez nunca mais teremos algo assim…



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