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[49ª Mostra SP] Bugonia: um Yorgos menos Lanthimos

  • Foto do escritor: Yuri Cesar Lima Correa
    Yuri Cesar Lima Correa
  • há 7 horas
  • 4 min de leitura
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Foi só recentemente, quando soube que assistiria a Bugonia (2025), que fui atrás de conferir Tipos de Gentileza (2024), o filme anterior do grego Yorgos Lanthimos que aqui no Brasil teve sua estreia um pouco acavalada com a de Pobres Criaturas (2023) — ambos saíram no mesmo ano. Estranho, porque não costumo deixar de conferir ainda no cinema filmes de cineastas cujo trabalho eu gosto, e eu gosto da filmografia do Yorgos. Entre Dente Canino (2009) e a releitura de Frankenstein, o único de seus filmes que não considero impecável é o curta Nimic (2019), o que, em retrospecto, me faz entender porque adiei Tipos de Gentileza por tanto tempo: o racionalismo monocórdio com que Lanthimos expressa estranheza e inadequação me soa mais autêntico quando num longa-metragem do que em histórias curtas. Na envergadura da duração de um longa, essa sua linguagem (mais para tom, na verdade — já volto nisso) encontra tempo para se assentar, ganhar a confiança do espectador e assim revelar os personagens e conflitos que existem por baixo do manto estético. Entretanto, Yorgos volta em Bugonia num tom bem menos Lanthimos — e aqui entra o que questionei há pouco: sua linguagem ainda está lá, mas o tom é bem mais palatável.


O mais comercial dos filmes do celebrado cineasta grego segue sua nova tendência: cores! Agora seus filmes não são mais baseados em paletas creme e azul, elas vibram com cores básicas apresentadas levemente lavadas pela luz, algo que confere um certo ar de graça e classicismo condizentes com a pompa de sua ainda rigorosa direção — isso funcionou particularmente bem em Pobres Criaturas, com aquela pegada ilumi… Classi… Retro… Ah, funcionou lá, ok? E ainda que tenha recaídas abstrativas aqui e ali, Bugonia é também objetivo e dinâmico o suficiente para se passar por “filme de massa”, principalmente porque seu humor e violência pungentes advêm do absurdo facilmente reconhecido na situação apresentada: dois primos vitimados pelas ações de uma corporação malvada resolvem sequestrar a CEO desta empresa quando chegam à conclusão de que ela é uma alienígena disfarçada de humana — o filme é um remake de um longa sul-coreano chamado Save the green planet! (2003), aliás.


Emma Stone e Jesse Plemons dão sequência à parceria com Yorgos Lanthimos; ela como a cínica CEO Michelle Fuller, ele como Teddy, o caipira e apicultor que lidera a empreitada criminosa enquanto serve de tutor para seu primo Don (Aidan Delbis). Stone foge da composição segura que lhe garantiu seu último Oscar como Bella Baxter e assume a persona da empresária preocupadíssima com a sua imagem pessoal, apoiando-se em roupas e sapatos para soar mais imponente ao desfilar no meio do escritório. Michelle precisa que todos a vejam como uma mulher de sucesso e assertiva, andando ereta e impecável com um salto alto depois do outro enquanto cumprimenta seus funcionários — visão que Yorgos entrega através de lentes grande-angulares que nos permitem acompanhar a personagem dos pés à cabeça ainda que estando muito próximos de suas feições calculadamente cordiais. Por outro lado, Michelle não quer ser vista como fria e desumana, e sua insistência para que os empregados saiam às 17h30, se puderem, é tanto cômica quanto digna de pena. Falando em pena, é isso que suscita também a figura de Teddy, uma vez que Jesse Plemons decide vivê-lo com uma ingenuidade comovente impregnada no modo vazio com que olha para tudo e no nervosismo que o impede de impostar a voz. Algo essencial para o funcionamento do núcleo central do filme, eu diria, pois é a pena que sentimos por esses personagens que nos impede de enxergá-los apenas como desprezíveis. Ela por sua posição de poder e indiferença quanto aos efeitos colaterais de seus empreendimentos; ele por sua ignorância e paranoia que resultam em violências até mesmo contra seu primo Don.


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Contudo, Bugonia não chega a ser um filme político ou tampouco apolítico, pois sua discussão ideológica é rasa em reflexo à própria paranoia de seus protagonistas (elogio), vide o momento em que Teddy diz já ter feito parte de vários tipos de subvertentes extremistas, que vão da extrema-direita à extrema-esquerda. Acontece que o acirrado debate por uma verdade única e o método de imposição da sua verdade enquanto fim em si mesmo é uma disputa sem vencedores. Enquanto colocamos versões subjetivas do real para digladiar entre si, os fatos perpetrados por poucos com a anuência de muitos seguem sendo concretizados todos os dias. Discutir o ângulo sobre esses fatos nos mantêm ocupados, mas não os altera e nem previne sua recorrência. E aqui jaz o cerne de Bugonia: como explicar o absurdo para alguém que está preparado para se aceitar com um pária? Como checar a veracidade e idoneidade de uma imagem pública sabendo o tanto que se pode fazer para maquiá-las hoje em dia? Caipiras ou CEOs, esquerda ou direita, estamos todos em estado de constante paranoia sobre a nossa própria imagem, algo que mexe diretamente com o nosso ego, obviamente resultando no instinto de querer impor aquilo que pensamos ao outro. Não se tratam mais de bolhas, e sim de trincheiras. Antes a época em que diziam que “sabemos cada vez mais sobre cada vez menos”, pois agora parece que somos cada vez mais burros sobre esse pouco que sabemos. Nenhum tipo de inteligência e conhecimento se constrói em modo de isolamento. A história e a ciência nos mostram que a interação é vital para a geração de possibilidades, que levam a erros, que levam a novas possibilidades e expansões do pensamento. Agora, quando dois objetos imutáveis se encontram, ninguém sai do lugar.


Em tons de comédia esquizoide, o filme se diverte com essa imutabilidade; com as não-concessões de ambos os lados, com a forma como se deformam pela idealização que fazem um do outro — Teddy se veste com um terno maior que seu corpo em uma tentativa falha de parecer “sério”, enquanto Michelle torna-se uma figura realmente alienígena com a cabeça raspada e a pele coberta de creme branco sob a luz fluorescente. O fato, entretanto, segue ali, independente da verdade que façam dele, aguardando o desfecho violento na disputa de versões.


Esse texto faz parte da cobertura do Esqueletos no Armário da 49º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queer e de sexualidade.

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