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  • Foto do escritorMatheus Marchetti

Canções para um Mundo Canibal: O Cruel Barbeiro de Fleet Street chega ao Brasil


As grotescas caricaturas de Angela Lansbury e Len Cariou, da montagem original na Broadway

Figura mítica da Londres na era dos lampiões, Sweeney Todd saiu dos penny dreadfuls do passado direto para os palcos nos anos 70. O dramaturgo Christopher Bond repensa o lendário barbeiro menos como um monstro pura e simplesmente, e mais como uma espécie de trágico anti-herói, um Conde do Monte Cristo com notas de Jack o Estripador. Preso injustamente por um juiz corrupto, Benjamin Barker volta para casa quinze anos depois, apenas para descobrir que sua esposa se envenenou e a filha deles, Johanna, está sendo criada pelo mesmo homem que o condenou. Barker, agora sob o pseudônimo Todd (talvez derivado do alemão tod - morte), sacia sua sede de vingança matando fregueses despercebidos, se desfazendo dos corpos com a ajuda de sua vizinha — a Dona Lovett — que usa a carne dos mortos para fazer tortas.

Esse melodrama macabro ganhou ainda outra camada em 1979, quando Stephen Sondheim incorporou música à dramaturgia de Bond, num espetáculo quase inteiramente cantado, tido por muitos como uma das grandes óperas contemporâneas. E agora, em 2022, o diretor Zé Henrique de Paula adiciona ainda outra dimensão à obra, numa montagem imersiva, um tanto desconfortavelmente próxima da nossa realidade. As barbáries da Inglaterra vitoriana assombram o Brasil de Bolsonaro — terra de ninguém onde cão come cão, imersa em doença, regida pelos ricos e poderosos que se alimentam da miséria humana, São Paulo como uma metrópole de almas penadas. E com a carne cara do jeito que tá, quem que vai dizer que a Dona Lovett tá errada?

Escondido aos fundos do Shopping JK Iguatemi, um poste de luz indicando a Rua Fleet — respingado em sangue — anuncia a nossa chegada. Um elevador banhado em neon vermelho nos transporta para um mundo de sombras. Com vista para o fétido Rio Pinheiros (que muito poderia ser o Rio Thames no século XIX), o 033 Rooftop, antes a Moscou de Tolstoi (em Natasha, Pierre, e o Grande Cometa de 1812), se transforma na Londres de Dickens. O público pode se sentar em mesas circulares como fregueses da Dona Lovett (tortas doces e salgadas, mas infelizmente não de carne humana, também são servidas para quem puder bancar), ou até em bancos de rua, enquanto a cena é fragmentada pelo espaço. No palco principal, a velha loja de tortas abaixo, e acima, a barbearia assombrada pairando sobre tudo. De um lado, um portão de ferro (da entrada da loja, ou talvez de um cemitério?); do outro, a casa do temível Juiz Turpin que depois vira um manicômio; e no centro da sala, um tablado (servindo tanto literalmente como de forma mais abstrata, onde lembranças e pesadelos tomam forma). Tal divisão ganha imensa potência nos grandes números de ensemble, com o elenco cuidadosamente dividido entre “cenários”.

Os atores navegam esses espaços à meros centímetros dos assentos, ocasionalmente interagindo com o público, criando uma experiência intimista muito distinta — tanto em formato como em estética — da montagem original de Hal Prince, que utilizava o tradicional palco italiano como uma grande fábrica (ou abatedouro) da Revolução Industrial emoldurando a narrativa. Sondheim respeitosamente discordava da interpretação de Prince, acreditando que a obra tinha um apelo universal que transcendia àquele espaço-tempo específico — um conto de vingança que tecnicamente pode acontecer em qualquer lugar, em qualquer época. Apesar da direção manter a ambientação vitoriana, os figurinos de João Pimenta refletem a cruel atemporalidade do texto. Os designs são claramente inspirados na modas dos 1800s, mas os tecidos e ornamentos são todos modernos — remetendo inclusive à estilos emo tão populares em 2007, quando a adaptação cinematográfica de Tim Burton estava em alta (e que, por sua vez, também abraça totalmente essas qualidades).

O 033 Rooftop transformado na Londres vitoriana - a loja de Mrs. Lovett e seus arredores

A cenografia e a caracterização dos personagens estão, portanto, muito mais próximas de Burton do que de Hal Prince, mas quem estiver bem familiarizado com o filme ainda vai ter muitas surpresas pela frente. Tendo cortado uma generosa porção das músicas — incluindo algumas das mais importantes, e reduzindo as outras que sobraram — a versão de Burton está mais para um excelente trailer do original do que qualquer coisa. Pouco se perde em termos de narrativa na tradução do palco para a tela, mas para um musical quase inteiramente cantado, onde a canção não é meramente decorativa e sim o coração da obra, você tem um resultado quase completamente diferente. Além de um humor muito mais presente e uma atmosfera sexual mais latente, uma das principais diferenças entre as duas variações é a presença de um coro grego fantasmagórico que nos convida a “ouvir a história de Sweeney Todd” (num recorrente tema musical baseado no dies irae - o canto do Julgamento Final) e comenta a ação durante todo o espetáculo — reforçando as origens do personagem como uma espécie de lenda urbana, que ia aumentando e se metamorfoseando no boca-a-boca.

Se a percepção que muitos tem sobre musicais é a de números pomposos com letras supérfluas, que se vendem mais pelo espetáculo do que pelo conteúdo (como se espetáculo e conteúdo não pudessem ser a mesma coisa?), Sondheim vai pelo caminho contrário. O que destaca seu trabalho é justamente a não separação de letra e melodia — no caso dele, a letra é a melodia, sua composição sempre em intrínseca simbiose com a métrica da língua inglesa e todas as suas minúcias. Traduzir Sondheim, principalmente para uma língua musicalmente tão distinta do inglês, é quase impossível (o que pode explicar a falta de espetáculos seus no Brasil), mas a grande Fernanda Maia abraça o desafio com gosto, não apenas conduzindo a direção musical, mas versionando as canções para que se adequem à sonoridade do português (sem perder o sentido do texto). Todos os deliciosos trocadilhos são reconfigurados de forma que tenham o mesmo efeito para o público brasileiro que tiveram para o público americano, e julgando pelas gargalhadas e aplausos estrondosos da primeira apresentação, eles atingiram o efeito desejado.

A omissão de alguns números musicais nessa nova montagem, possivelmente para reduzir o tempo de duração, pode soar esquisito para quem já estiver muito habituado com o espetáculo, acelerando um tanto o ritmo do segundo ato (a ausência de alguns reprises de The Ballad of Sweeney Todd na segunda metade deixam as transições de cena mais secas), mas dificilmente vão prejudicar quem estiver menos familiarizado com o todo. Há tanto o que se apreciar no elenco e na encenação, que esse tipo de detalhe passa praticamente desapercebido.

Evitando o banho de sangue que caracterizava as primeiras encenações e o filme, Zé Henrique opta por simples mas eficazes efeitos de luz nos assassinatos. Pode até ser um pouco "de menos" para os gorehounds de plantão, ou mesmo para aqueles que preferem seu Sweeney mais sujinho, mas o jogo de luzes é tão sublime — refletores rubros que se acendem na direção da plateia, como se cegassem os espectadores num orgasmo sangrento — e mesclado com aquele maldito apito (um som recorrente que ocorre em todas as mortes, muito similar ao efeito sonoro dos flashes no Massacre da Serra Elétrica original — um misto de animal morrendo, grito humano, carne sendo cortada, e apito de fábrica), o resultado continua perfeitamente chocante. Há uma abordagem mais Hitchcockiana nas sutilezas desse Sweeney brasileiro, o que faz total sentido visto que as composições foram inspiradas nas trilhas sonoras de Bernard Hermann para Hitchcock, especificamente seus violinos surtados em Psicose (talvez em homenagem ao seu colega/amigo/amante Anthony Perkins, que tendo experiência considerável em teatro musical, teria inclusive feito um Mr. Todd magnifico).


Lovett (Andrezza Massei) e Sweeney (Rodrigo Lombardi). Crédito: Stephan Solon

Com uma voz imponente digna dos grandes mestres do horror (ele está quase um jovem Christopher Lee, nos tempos d’O Vampiro da Noite), que gela a espinha já da primeira fala, Rodrigo Lombardi simplesmente nasceu para interpretar Sweeney Todd. Ele mantém as trevas impenetráveis do personagem ao mesmo tempo que reforça a humanidade dessa figura que há anos perdeu tudo o que lhe fazia humano. Há também uma surpreendente sensualidade na sua interpretação — de modo que muitos espectadores vão estar fazendo fila para terem suas gargantas cortadas por ele.

Entretanto, a verdadeira dona do espetáculo é a Lovett de Andrezza Massei. Papel eternizado por algumas das grandes damas da Broadway como Angela Lansbury e Patti LuPone, Massei não deixa nada a desejar — dela inclusive é, possivelmente, a mais completa e complexa variação dessa Lady Macbeth cockney. Lansbury originou o personagem enfatizando a comédia, e Andrezza abraça esse humor caricato mas sem nunca perder a verdade em suas ações. O extremo oposto de Todd, cujos crimes são motivados pelo ódio, a verdadeira mente brilhante por trás das mortes é motivada por um amor que transborda de tão grande (amor pelo barbeiro no andar de cima, ou pelo jovem assistente que ela toma como filho) e é esse amor que, tragicamente, inevitavelmente, a leva para seu cruel fim.

Zé Henrique enfatiza o aspecto humano (algo que pode se perder facilmente nessa obra, dependendo da direção) em todos os personagens, de forma que cada ator tenha pelo menos um grande momento de destaque. Dennis Pinheiro e Pedro Navarro, em especial, roubam completamente a cena como o jovem marinheiro Anthony e o fabuloso barbeiro Pirelli respectivamente. O timing cômico de Navarro é inigualável, e a voz de Pinheiro talvez seja a mais bela do elenco masculino (seu Johanna está com certeza no pantheon de interpretações Sondheimianas). Vale também destacar a presença intimidadora de Guilherme Sant’anna como o Juiz Turpin, o verdadeiro demônio da trama (e mesmo nele, o ator consegue criar um certo pathos na sua crueldade), mas é uma pena que seu Mea Culpa — o número mais chocante e grotesco do musical — tenha sido cortado dessa vez, pois seria absolutamente assombroso (no melhor sentido).

Qualquer dúvida sobre voltar ou não ao teatro em meio às loucuras desse mundo semi-pandêmico, com certeza vão se desfazer com esse elenco perfeito encenando o material perfeito. Para quem mora em São Paulo, e puder pagar o valor do ingresso, é a raríssima oportunidade de vivenciar ao vivo o magnum opus do maior autor dos musicais americanos, e por mais que existam três gravações oficiais do espetáculo (uma com o elenco original em 1982, e outros dois concertos mais recentes — todos imperdíveis), você só vai encontrar isso no teatro. Attend the tale of Sweeney Todd!


Os atores e músicos que dão vida à Sweeney Todd. Fonte: instagram oficial @sweeneytoddbrasil


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