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  • Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

Com licença, senhor nerd, mas a Matrix também é nossa

Atualizado: 31 de dez. de 2021

Os heróis estão encurralados no topo de um prédio, cercados pelo exército do vilão e dois helicópteros com metralhadoras e lança-mísseis. Na caixa de som, vem crescendo a trilha épica; na tela, os inimigos preparam suas armas e tudo se encaminha para um grandioso confronto final. Os heróis, porém, olhando para aquele circo todo, decidem sair voando enquanto dizem um sonoro: “Tchau!”. A diretora Lana Wachowski corta direto para um momento de ternura, um toque de mãos entre Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss). Eles não precisam mais lutar, não querem mais fazer parte do espetáculo, o que importa já foi conquistado.


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Esse clímax resume bem Matrix Resurrections, um filme marcado pela recusa, pela fuga, pelo esforço para esquivar-se — desta vez não de balas, mas das garras de um sistema que quer sempre mais e maior, mais barulhento. Os fãs querem mais lutinha, mais efeitos visuais, mais looks fodões trabalhados no couro, no látex e óculos-escuros. Todos os homens-cis-héteros-brancos-nerds que fazem cosplay de Neo (sinal de incel) querem a volta de personagens queridos, querem reviravoltas e querem suas teorias concretizadas. Além disso, o Twitter demanda um fan service servido ao dente. Não quer dizer que filmes como Vingadores: Ultimato (2019) e Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021) sejam necessariamente ruins por cederem a essas demandas — muito pelo contrário. Mas em tempos de filmes escritos por algoritmos, nada mais adequado que o novo Matrix fuja disso. E se tem nerdola influencer contratado por grandes portais saindo no meio da sessão indignado, então Lana conseguiu meter o dedo na ferida certa.


Acontece que hoje, na internet, todos temos um pouco de Oráculo, a personagem-programa que habitava a Matrix da trilogia original escrita e dirigida pelas irmãs Wachowski. Assim como ela, conseguimos antecipar as probabilidades da cultura pop e de entretenimento. Para os fãs de super-heróis, por exemplo, não houve surpresas no novo filme do Homem-Aranha, por mais foda que possa ter sido ver suas teorias ganhando vida em tela. E até nós, fãs de horror, precisamos admitir que dificilmente o próximo Pânico (2022) vai conseguir fugir muito de alguma das duzentas confabulações que estamos bolando há meses. Na contramão disso, Lana Wachowski apenas diz "neca-de-pitibiribas" e entrega não só uma trama na qual os personagens fogem e se recusam a engajar no espetáculo antecipado pelo sistema, como também um filme que faz exatamente a mesma coisa — recusa a plasticidade da ação vista anteriormente, recusa todo tipo de binariedade das interpretações, recusa o conformismo e recusa a militarização do entretenimento (a luta armada, quando surge, é ilustrada com o caos, corpos que se misturam, se perdem num emaranhado feito para causar repulsa, estranhamento, e não diversão).


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Toda a ação de Matrix Resurrections é frustrante; ora porque os heróis conseguem evitá-la, ora porque não conseguem e aí a direção adota tons caóticos e até de pesadelo para ilustrar o sentimento deles em meio àquilo. A ação glamourizada e estilizada dos filmes anteriores já não existe e nem faz sentido, agora ela é artifício dos vilões, tanto que nem chamaram de volta o veterano Yuen Woo-ping, aclamado coreógrafo de lutas que trabalhou na trilogia original. E os protagonistas, que antes andavam armados até os dentes, agora sequer tocam numa pistolinha que seja. O novo poder de Neo, aliás, é empurrar pessoas para longe e evitar o confronto. Sim, ele ainda sabe Kung Fu, mas quando é obrigado a engajar numa luta, o filme trata isso com tristeza, pois ceder à luta corpo a corpo é uma derrota para o personagem. Como explica o vilão vivido por Neil Patrick Harris, a nova Matrix se alimenta do conflito, da ação, da pancadaria e do tiroteio. E o sistema quer uma pancadaria bonita, decupada com estilo, repleta de coreografias elaboradas e, de preferência, carregada no bullet time. Fugir disso, representa agora a vitória para os heróis.


Mas existe entretenimento nessa frustração para quem estiver realmente torcendo pelos protagonistas, e não só querendo ver (mais um) espetáculo de efeitos visuais. A perseguição final, por exemplo, é angustiante, horror puro; em ruas escuras e mergulhadas num tom de pesadelo, Neo e Trinity literalmente fogem de bots, tentando não engajar numa luta com o exército zumbificado, apenas usando seus poderes para afastá-los. O perigo ali não é perderem a luta, mas participarem dela. E conforme os bots tornam-se mais agressivos nas suas estratégias para fazê-los engajar, se jogando de prédios como kamikazes, mais desesperadora fica a situação dos nossos protagonistas. Ok, as metáforas de Lana nunca foram das mais sutis, nem por isso deixam de ser eficientes.



Para um público queer, com o olho treinado por décadas tentando encontrar migalhas de representatividade no cinema mainstream, é muito fácil enxergar aquilo que é evitado nesses filmes, aquilo que não está dito, que existe apenas entre os espaços. Provavelmente por isso, a não-ação de Matrix Resurrections é tão colorida e bem coreografada aos nossos olhos. Para nós, o encanto vem não da imagem literal que se apresenta em tela, mas do código por trás dela. E isso não é ser condescendente e dizer que somos seres elevados e “vocês que não entenderam”. Não, é apenas uma constatação: ser queer é conviver com a frustração, como bem versa A Arte Queer do Fracasso, de Jack Halberstam (já quase uma bíblia entre os LGBTQIA+), e quando todos os blockbusters são feitos para agradar o maior público possível (e a hegemonia sempre é branca, masculina e héterocisnormativa), é catártico assistir a um filme desses cuja linguagem está adaptada para as nossas sensibilidades, uma linguagem que conversa com as nossas vivências e os nossos modos de se relacionar com a realidade.


Pela primeira vez, não sinto vontade de debater com pessoas fora do meio quando aparecem dizendo que não gostaram deste novo Matrix, ou que a ação é "feia". Inclusive, a decepção de certos nerds influencers é a confirmação de que este filme não foi feito para eles. Isso porque, antigamente, ser nerd significava ser um pária, uma pessoa que curtia narrativas fantasiosas como forma de empoderamento. Agora o nerd é o público majoritário das grandes produções e, infelizmente, está acomodado, mimado, acostumado a ganhar tudo que pede. Quer 3 homens-aranhas? Toma aí. Quer 60 vingadores numa cena? É pra já! Um novo Caça-Fantasmas sem mulheres? Feito. O corte Zack Snyder de Liga da Justiça? Ok, prontinho. Enquanto isso, pessoas queer, que costumavam encontrar conforto e acolhimento na cultura nerd, são mais uma vez jogados para o canto agora que o negócio virou mainstream. “Ah, mas e Eternos (2021), hein? Tem representação gay lá!”. Sim, um viado alquebrado responsável pela criação das armas de destruição em massa; seria muito moderno caso a figura do gay como destruidor da sociedade não fosse um clichê ofensivo já desde os anos 1950. “Ah, mas pelo menos está representando os gays!”. Para quem, José? Não nos interessa uma representatividade que deixa o heterocisnormativo confortável — e basta ver ou ouvir qualquer canal no YouTube ou podcast sobre Eternos para constatar a parada obrigatória que todos eles fazem para aplaudir Phastos (Brian Tyree Henry) e a representatividade gay que ele trouxe para o MCU. Isso não nos serve. Uma representatividade saudável precisa chacoalhar o mundo do hétero, da família tradicional papai e mamãe, precisa deixá-los desconfortáveis e pensativos, pois estamos falando de mudança, de alteração da sua realidade — e este nunca é um processo agradável. Sim, há um valor de aceitação e normalização nisso, com certeza, mas o conforto deve ser contestado para que a representação não vire assimilação.



E em última análise, o que Matrix Resurrections recusa é essa assimilação. Lana Wachowski, uma mulher trans que, junto com a irmã, Lilly, foi assediada pela imprensa e por fãs malucos vestidos de Neo nos últimos 20 anos, sabe que o fazer queer tem menos a ver com mostrar personagens do mesmo sexo se beijando (o que também é importante), e mais a ver com a quebra dos padrões heterocisnormativos. Em Matrix (1999), isso aparecia como texto, agora ela traz como linguagem, recusando-se a alimentar a nostalgia, mas sempre com muito carinho por sua criação. Seu filme é sobre um resgate tanto quanto literal. Tirar os personagens queridos e as metáforas das mãos dos nerdola era a missão de Lana, que perdeu ambos os pais com cinco semanas de diferença um do outro e diz que enxerga neles um pouco de Neo e Trinity. Por isso há catarse em vê-los fugindo do confronto no final para estarem juntos, voando serelepes e bregas em direção ao pôr-do-sol.


Antes, o objetivo era tirar as pessoas da Matrix e levá-las para Zion, a cidade analógica de resistência humana. Agora, a ideia de uma cidade sem tecnologia é vista como retrógrada. Claro, por que devemos fugir do sistema e nos esconder nos porões do mundo, estagnados no tempo e espaço? Humanos e “máquinas” não só podem, como devem dividir expertises e coexistir em prol do desenvolvimento de todes. Logo, a própria Matrix deve ser nossa também. Neo e Trinity, que agora podem ver o código cristalino desse sistema, decidem ficar por lá e alterá-lo. Na visão otimista de Lana, acordar da Matrix não tem mais nada a ver com libertar-se dela, mas forçá-la a mudar, forçá-la a nos acomodar. Despertar é tomar para si. Com seu blockbuster feito de recusas, Lana Wachowski demonstrou que é possível apropriar-se da máquina e dizer um sonoro "Tchau!" para não entrar no jogo dos bots. Chega de migalhas. A Matrix também é nossa — sem filtros verdes e idealização armamentista, mas um lugar onde o amor é literalmente poderoso e (ainda bem) muito brega. E sabemos que nada irrita mais um heterocis do que breguice. Ótimo!



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