Réquiem para os Warren: há uma assombração conservadora em Invocação do Mal
- Luiz Machado
- há 16 minutos
- 7 min de leitura
Atenção: este texto pode, ou não, ser sobre Invocação do Mal: O Último Ritual (descubra!). Ele contém alguns detalhes da trama, mas sem spoilers.
Em algum lugar da Pensilvânia, entre os anos de 1974 e 1989, Jack e Janet Smurl viveram um verdadeiro inferno em sua casa. Começaram os barulhos estranhos, então se levantaram os odores fétidos, os objetos se moviam e o cão da família ficou com estranhamento agressivo. Sinais de casa velha? Não! Criação ruim do cachorrinho? Jamais! Assombração.
Com o passar do tempo tudo piorou; em um dos casos, uma das filhas da família chegou a afirmar que estava sofrendo abusos sexuais por uma presença invisível. Desesperados, os Smurl buscaram ajuda da mídia. Isso atraiu a atenção dos demonologistas Ed e Lorraine Warren, que chegaram ao local em 1986. Eles concluíram que quatro entidades habitavam a casa. O basiquinho: três espíritos humanos e um demônio que manipulava os demais. Mas, apesar dos esforços (exorcismos e orações, claro), não conseguiram resolver o caso completamente. Não é bem isso o que acontece em Invocação do Mal: O Último Ritual, que chega aos cinemas brasileiros no dia 5 de setembro.
O filme marca o retorno de Patrick Wilson e Vera Farmiga como os Superortodoxos favoritos da cultura pop, mergulhando novamente em um dos casos mais controversos da carreira de casos controversos do casal. Desta vez, encerrando a trajetória dos demonologistas no cinema, com uma investigação carregada de tensão, fé e dilemas sobrenaturais que ecoam até hoje.

A bem da verdade, talvez não tenhamos nada de muito de novo para falar sobre o capítulo final da franquia (de 10 filmes, uau!) iniciada por James Wan em 2013. Derivativo e perdido são adjetivos já bastante usados para falar desses filmes que podem ou não divertir, dependendo do quanto estiver disposto. Mas há algo aqui que me chamou atenção e já estava maturando na minha mente desde o terceiro filme da série original, A Ordem do Demônio (2021).
Refrescando um pouco sua memória: o caso que ficou conhecido como "The Devil Made Me Do It", envolvendo Arne Johnson, ganhou notoriedade por ser a primeira vez na história dos Estados Unidos em que um réu tentou usar a possessão demoníaca como defesa para um assassinato. Em 1981, Arne matou seu senhorio, Alan Bono, e disse que estava possuído por um demônio. A alegação foi fortemente promovida por nossos caros Ed e Lorraine Warren. A defesa de Johnson, que tentava isentar o réu de responsabilidade pelo crime, se apoiava no pânico satânico que tomava conta da sociedade americana na época. Os Warrens, aproveitando-se desse clima de medo e desinformação, ajudaram a construir uma narrativa onde o diabo era o responsável pelos atos do réu. Essa história foi usada como munição para tentar convencer o público e o tribunal de que Johnson não tinha controle sobre suas ações, alimentando ainda mais o medo coletivo de forças demoníacas em uma sociedade altamente religiosa e alarmada com qualquer ameaça à ordem tradicional.

Voltemos para 2025, especificamente para o programa De Frente com Blogueirinha. Ao relatar sua experiência na Igreja Universal, Andressa Urach usa a expressão “sequestro da fé”. De acordo com ela, líderes espirituais usam a crença das pessoas para manipular comportamentos e até justificar explorações financeiras. Esse conceito aponta para quando a fé, que deveria ser uma força de apoio e espiritualidade, é cooptada e instrumentalizada para controle e lucro, desviando-se do propósito original de acolhimento. O relato de Urach chama atenção justamente porque mostra, de forma pessoal e direta, como esse tipo de manipulação pode impactar vidas inteiras. Lembra algo?
Muito antes do primeiro Invocação do Mal pipocar nos cinemas, os Warren já eram nomes bem conhecidos. Fundador da New England Society for Psychic Research (NESPR), Ed se autodenominava demonologista e afirmava ter experiência em confrontar forças sobrenaturais. Já Lorraine se apresentava como clarividente e médium, alegando a capacidade de sentir e comunicar-se com “presenças”. No entanto, muitos de seus casos mais famosos são amplamente questionados, com críticas sobre a falta de provas científicas e evidências concretas.
O casal era frequentemente acusados de manipular testemunhos e distorcer fatos para criar uma narrativa sensacionalista, que os ajudaria a lucrar com livros, palestras e, agora, filmes baseados em suas "investigações". Fotografias manipuladas, gravações duvidosas e relatos sem qualquer embasamento eram parte das maquinarias para convencer o público da veracidade de suas alegações. Apesar das controvérsias e das acusações de exploração financeira, os Warrens conseguiram criar uma legião de seguidores e se tornaram figuras centrais no imaginário da investigação paranormal. Não sobrou espaço nem para o Scooby-Doo.
A ênfase aqui, além de “provas”, é a palavra “ciência”.

Ao terminar de maneira semiépica (não é tão legal quanto o clímax do segundo filme), O Último Ritual se despede dos personagens com alguns letreiros na tela. Entre eles, o mais gritante, afirma que o casal foi perseguido por homens da ciência, mas nunca tiveram sua fé abalada. As perguntas que ficam são: filmes de terror precisam ser calcados em realismo? Não podemos encarar as narrativas dos Warren de maneira fantasiosa? Não podemos apenas acreditar? Precisamos ser tão céticos?
E são excelentes perguntas! Mas, para respondê-las, precisamos pensar um pouco mais sobre a tensão entre discurso e representação. Antes, vamos ao básico.
O conceito de pós-verdade descreve um cenário em que os fatos objetivos e as evidências científicas têm um papel secundário frente às emoções e crenças pessoais na formação da opinião pública. Em um mundo de pós-verdade, as verdades relativas ganham mais peso do que a objetividade, e a percepção de cada indivíduo sobre o que é real passa a ser influenciada, muitas vezes, por suas convicções ideológicas ou sentimentos, em vez de dados concretos. Esse fenômeno é especialmente visível nas redes sociais, onde as informações circulam sem a mediação crítica e a verificação dos fatos, permitindo que mentiras e desinformação se espalhem rapidamente.
Um exemplo bem simplista e bastante esdrúxulo: você já ouviu falar das Gaylors?
“Gaylor” é o nome dado à comunidade de fãs que especula sobre possíveis experiências ou relacionamentos homoafetivos de Taylor Swift, sustentada por interpretações de suas letras, símbolos e escolhas estéticas, ainda que sem confirmação da própria cantora. Poderia até ser uma boa piada interna de fandom, se parte desse grupo não acreditasse fielmente na narrativa. Alguns fãs que seguem a teoria Gaylor estendem essa lógica também para o relacionamento atual de Taylor com o jogador de futebol americano Travis Kelce, interpretando-o como mais um possível arranjo de imagem pública, uma espécie de “lavender wedding” que reforçaria a heteronormatividade da cantora diante da mídia, enquanto suas supostas experiências queer permaneceriam sugeridas apenas em códigos para os fãs mais atentos. Ou seja, aqui não importa mais o que é real ou não na vida privada da cantora. Quem QUER acreditar, VAI acreditar.
Por isso, a pós-verdade não é apenas uma questão de distorcer ou manipular fatos, mas de criar uma realidade alternativa. Esse ambiente facilita a ascensão de discursos populistas, que apelam diretamente ao emocional e ao senso comum das pessoas, frequentemente em detrimento da complexidade e da verdade factual. Assim, vivemos uma transformação significativa na forma como a sociedade lida com o conhecimento e a verdade, tornando-a mais suscetível à manipulação e à polarização ideológica.
Você lembra da ênfase da palavra REAL nestes filmes?
Está no pôster, no material promocional, é dita e mostrada diversas vezes ao longo dos próprios minutos mostrados em tela. Nas entrevistas com diretores, roteiristas, jornalistas e até atores. A própria Vera Farmiga andava pra lá e pra cá de braços dados com Lorraine Warren, quando esta ainda estava viva. Eles querem que você encare essas histórias como REAIS. É aqui que entra o problema: a narrativa construída pelos filmes de Invocação do Mal nos mostra como o entretenimento é uma ferramenta poderosa para moldar a percepção pública.

Ed e Lorraine Warren não aparecem apenas como demonologistas, mas como um casal que encarna um ideal familiar norte-americano tradicional: unidos, devotos, altruístas e guiados por uma fé inabalável. Livres de erros e perseguidos pelos “homens da ciência”. Essa representação ultrapassa o horror sobrenatural e toca em valores culturais mais amplos, reforçando a noção de que a família estruturada, heteronormativa e religiosa é o principal escudo contra o mal e a desordem.
É uma construção simbólica que dialoga diretamente com o discurso da extrema direita fundamentalista religiosa, que se apoia na ideia da família “tradicional” como pilar da sociedade e como resposta às incertezas do mundo contemporâneo. Quando revisitamos a crença dos Warrens dentro da narrativa, ela logo soa anacrônica e até mesmo ridícula diante de uma sociedade pós-moderna cada vez mais cética, que relativiza certezas absolutas e encara a fé como construção cultural. O enquadramento temporal nos anos 1970 e 1980 intensifica essa tensão: em meio à contracultura, ergue-se também a ascensão do conservadorismo Reaganista*, que transforma a moral cristã em trincheira política e o conceito de “família” em arma.
*“Reaganista” refere-se ao conservadorismo promovido pelo o presidente Ronald Reagan nos anos 1980, marcado por moral tradicionalista, livre mercado e forte alinhamento religioso-político.
Sob essa ótica, os Warrens passam a operar como símbolos paradoxais no cinema atual; ora caricaturas de uma fé ultrapassada, ora fantasmas de uma resistência carola delulu que insiste em sobreviver mesmo em plena era da dúvida. E ao promover a ideia de que a verdade científica é uma ameaça à moral e à fé, esses filmes ressoam com o crescente movimento anti-intelectual nos Estados Unidos, que é alimentado por figuras tão ruins quanto o próprio Demônio.
Bauman, ao discutir a modernidade líquida, descreve como a incerteza social abre espaço para explicações simplistas. Ao mesmo tempo, essas narrativas ajudam a alimentar um ciclo perigoso: em um mundo onde as evidências científicas são desacreditadas em favor de narrativas ideológicas, as sociedades correm o risco de retroceder para um modelo de governança autoritário, onde o racionalismo é subjugado ao medo, à ignorância e à manipulação. E essa dinâmica foi explorada tanto pelos Warren, quanto pela Extrema Direita, que trocou as possessões demoníacas pelas mamadeiras de piroca.
Isso tudo foi construído pra dizer que é particularmente muito esquisito ver esse tipo de filme sendo produzido em 2025. Uma pandemia e a eleição de figuras quase hitleristas depois, o tom doce e catequista dos Warrens soa não apenas deslocado, mas também pouco bem-vindo no clima político atual. É curioso notar como uma franquia que começou de forma quase singela, com ecos de horror gótico e atmosférico, tenha se transformado em algo cada vez mais ultrapassado, carregado de uma moral conservadora que ressoa mais com sermões dominicais do que um bom cinema de shopping. E isso se estende por todas as 2h15min de filme, partindo da cena inicial que mostra Deus trazendo um bebê natimorto de volta à vida, enquanto médicos incompetentes assistem incrédulos o milagre sem fazer nada. O tom é cortante e direto.
O mais inquietante é perceber como o terror mainstream parece ter se alinhado às paranoias americanas modernas, sem nem sempre oferecer um contraponto crítico à elas. Mas são os ossos do ofício; o terror sempre responde ao medo de seu tempo.
Para concluir esta tese: Invocação do Mal 4 não é bom. Quer ver um bom filme dessa franquia? Reveja o primeiro.
