top of page

Sobre Deuses e Monstros: dissecando o Frankenstein de Del Toro

  • Foto do escritor: Matheus Marchetti
    Matheus Marchetti
  • há 2 horas
  • 8 min de leitura
ree

Há uma inerente assepsia que permeia qualquer lançamento original da Netflix. A tela se transforma num vácuo digital despido de cor, textura e profundidade em prol de manter o reconhecimento de marca em primeiro lugar. Um “padrão de qualidade" forçado à qualquer projeto, independente do país de origem, que mata todo traço de autoralidade ou particularidade cultural. É um contraste enorme com o trabalho de um dos poucos realizadores no mainstream hoje que consegue manter uma integridade quase artesanal, principalmente dentro do fantástico. Que os dois possam coexistir dentro de um único filme soa quase como uma abominação… um ser incoerente, paradoxal, resultado do mais puro sentimento humano mas realizado pela mais perversa forma de tecnologia, e que ainda assim, carrega por trás dessa fachada monstruosa uma beleza profunda. É evidente que sacrifícios foram feitos para apaziguar a ira dos deuses do streaming, compromissos estéticos que ameaçam devorar este Frankenstein a qualquer momento… mas o coração apaixonado dessa estranha criatura bate mais forte. Em suas veias pulsa um sangue quente, latino, que escorre em toda sua doce glória escarlate por cada poro de pixel com um amor contagiante.


Começamos, como no livro, em um navio perdido no Ártico, onde um moribundo Victor Frankenstein (Oscar Isaac) é encontrado e resgatado pela tripulação, sendo perseguido por um “monstro do inferno” aparentemente indestrutível. Victor conta a história de como chegou até ali, e qual sua relação com essa criatura sinistra. Desde a morte prematura de sua mãe, o jovem Frankenstein ficou obcecado com a ideia de reanimar os mortos, mas seus experimentos eram sempre ridicularizados por seus colegas da medicina. Eis que ele conhece Harlander (Christoph Waltz), um excêntrico aristocrata que resolve bancar o projeto de Frankenstein para criar um homem a partir de cadáveres, com a ajuda de seu irmão William. Harlander morre no processo, mas a experiência é um sucesso… ou quase isso. A criatura (Jacob Elordi) ganha vida, mas não como o semi-Deus imaginado como Victor, e sim como uma criança confusa no corpo de um adulto disforme. Frankenstein se frustra ao se ver na posição de pai, e fica cada vez mais enciumado da mútua atração entre sua criatura e Elizabeth (Mia Goth) a noiva de William, por quem Victor é perdidamente apaixonado. Para cortar o mal pela raiz, Victor resolve destruir sua própria criação… sem se dar conta de que o que ele trouxe ao mundo não pode ser tão facilmente desfeito, e como em todo mito sobre mortais que ousaram desafiar os deuses, há um preço caro a se pagar por tentar domar a Natureza. Na tentativa de criar vida, Victor só causa morte e destruição - seja pelas mãos de seu “filho” em busca de vingança, ou pelas suas próprias.


Adaptar um gigante da literatura é, tal qual os experimentos de seu protagonista, um pouco “brincar de Deus”… o que, em toda a História da dramaturgia, sempre é arriscado. Um projeto dos sonhos de Guillermo del Toro, por décadas em gestação ao ponto de parecer irrealizável. Seu Pinóquio, lançado em 2022, trazia muitos temas e ideias em comum, dando a sensação de que aquele era, de fato, a materialização definitiva do seu Frankenstein. Depois disso, será que havia uma real necessidade de uma adaptação direta? Por sorte, ele ainda tinha um tanto a dizer sobre essa história… não necessariamente numa tentativa de adaptá-la com fidelidade, mas vindo de um lugar de profundo entendimento e estudo sobre o material. Assisti-lo é quase como ler as anotações, fichamentos e divagações rascunhadas por um leitor assíduo nas páginas surradas do livro original. Para construir seu próprio monstro, Del Toro precisa primeiro fazer uma autópsia no corpo centenário do “Moderno Prometeu", destrinchar suas partes para entender seus males e talvez ressignificá-los.


ree

Nesse processo, ele enxerga a narrativa menos como ficção científica e mais como fábula, ambientada num mundo de deuses e monstros, anjos e demônios que observam passivamente ao húbris dos homens seja como figuras de pedra e madeira que decoram os opulentos cenários, ou como oráculos em sonhos premonitórios. E tal qual uma fábula, os personagens são desenhados de modo mais arquetípico, caricato, maniqueísta até - mas sem nunca perder sua complexidade, e principalmente sua humanidade. O Victor de Oscar Isaac consegue ser mais cruel que o notoriamente psicótico Victor de Peter Cushing, mas suas motivações são mais claras, sua violência mais perversa por soar mais verdadeira… a agressão de um pai displicente, de um amante abusivo, um homem que em busca de grandeza e salvação encontrou sua própria danação.


O carinho de Del Toro pelas adaptações anteriores é evidente nos pequenos detalhes - seja no vestido de noiva que remete ao figurino icônico de Elsa Lanchester ou Jacob Elordi levando um tiro no olho igual Christopher Lee mas para além de James Whale ou Terence Fisher, o parente mais próximo deste dócil Frankenstein acaba sendo o trabalho de Christopher Isherwood e Don Bachardy no pouco conhecido mas fascinante A Verdadeira História de Frankenstein (1973). Em ambas as versões, a relação entre Criador e Criatura começa bem e vai azedando conforme Victor se frustra com sua criação (na minissérie, o Monstro nasce como um homem bonito, uma mente de criança no corpo de um galã, mas aos poucos sua carne começa a necrosar como um cadáver, causando deformações), o irmão de Victor morre enquanto adulto em vez de criança, há um homem mais velho sondando os experimentos de Frankenstein por motivos escusos, e Elizabeth é retratada de forma mais tridimensional, participando mais ativamente da narrativa. A adaptação de 1973 é ainda mais subversiva que a nova encarnação por seu homoerotismo latente (a relação dos dois é mais de casal do que parental) e uma crueldade mais afiada na segunda metade, mas em ambos os casos, cada mudança radical ao livro parece vir não de uma necessidade orçamentária ou um descarte do material original, mas sim de um diálogo direto com Mary Shelley… propondo novas possibilidades dentro das suas palavras, uma busca por cura e redenção dentro do que a própria considerava incurável, irremediável. Del Toro partilha das mesmas sensibilidades góticas da autora, mas assim como no caso Isherwood-Bachardy, se apresenta de forma bem mais tenra e calorosa (sua latinidade católica se sobrepondo à frieza anglicana), o olhar generoso e piedoso do realizador para com os monstros tomando o primeiro plano.


Michael Sarrazin como A Criatura em A Verdadeira História de Frankenstein (1973).
Michael Sarrazin como A Criatura em A Verdadeira História de Frankenstein (1973).

Essa interpretação mais sensível da Criatura foi criticada justamente por ser um pouco excessivamente generosa, tirando peso das suas ações ao absolver o personagem de grande parte dos seus crimes, mas no fim isso não parece tão diferente da forma que ele havia sido retratado anteriormente. Afinal, mesmo na versão de 1931, quando Boris Karloff causa a morte de uma criança, é explicitamente um trágico acidente, não um assassinato a sangue frio. Até o monstro mais violento de Lee é mera vítima da circunstância, uma criança hiperativa causando terror sob a tutela (e aprovação) do sádico Peter Cushing. De fato, é tão senso comum que “Frankenstein não é o monstro e sim o doutor, mas no fim o verdadeiro monstro é também o doutor” que quando isso é literalmente verbalizado no filme por William, o efeito é quase cômico. Mas para uma história que já foi adaptada para a tela tantas vezes há mais de cem anos, uma variação dessas não faz mal… é bem vinda, aliás, para tempos em que a marginalização do Outro enquanto ameaça para o cidadão de bem está tão presente. Funciona da mesma forma que Arthur Kopit reinterpretou o Fantasma da Ópera na minissérie de Tony Richardson (1990), um olhar humanista para aquele que é normalmente tido como um do grandes vilões da mídia ocidental, mais Homem Elefante do que uma assombração da Hammer (e ironicamente, Charles Dance que interpreta aqui o pai de Frankenstein foi também o Fantasma de Kopit).


Entre tantas mudanças, acaba sendo justo na personagem que mais se difere das intenções de Mary Shelley que a autora se encontra: Elizabeth. Não mais apenas o frágil e trágico interesse romântico de Victor Frankenstein, que assiste e sofre passivamente aos eventos que a circundam, ela se torna um alter-ego misto dos seus criadores, parte Mary, parte Guillermo. Sua aparência física remete mais aos retratos da autora do que qualquer filme biográfico que tentou adaptar sua vida para as telas (sinto muito, Elle Fanning), assim como a sua relação com cada personagem masculino da história. De fato, eles estão todos caracterizados como um membro do inusitado grupo de artistas que, durante um verão assombrado em Villa Deodati, inspiraram a criação deste monstro icônico. Victor Frankenstein - o gênio irreverente, perverso, sedutor e manco - é o rock star Lord Byron, enquanto seu irmão devoto William é Percy Shelley (o noivo de Mary/Elizabeth, e fortemente influenciado por Byron/Victor), e Harlander é o trágico John Polidori - que cuida do jovem cientista/poeta em busca de um afeto não correspondido, e cuja própria busca por um tipo de imortalidade traz o seu fim. Assistindo na sequência com o Gothic (1986) de Ken Russell, que especula como teria sido esse estranho fim-de-semana de explosões criativas na forma tipicamente escandalosa do diretor, a dinâmica deste inusitado quarteto é a mesma. A Criatura, por sua vez, é um pouco de cada um.


ree

É uma elaboração do que James Whale havia sugerido já no clássico A Noiva de Frankenstein (1935), com Elsa Lancaster interpretando tanto a própria Mary como a personagem-título. No livro, Elizabeth não é transformada na companheira morta-viva da Criatura, até porque a mesma é destruída por Victor durante sua própria criação (o que, consequentemente, leva ao assassinato de Elizabeth como vingança). Isso foi algo idealizado por Whale (mas não colocado em prática, para evitar um final excessivamente trágico num filme tão jocoso) e executado tanto na versão de Kenneth Branagh (1994) como na de Roger Corman (1990). Aqui, Del Toro busca um meio termo. Elizabeth se torna a Noiva do Monstro não depois de sua morte, mas ao se apaixonar pela Criatura em vida. Afinal, se normalmente é o Monstro que inveja o amor de Elizabeth e Victor, aqui é Victor que inveja o amor de Elizabeth e sua criatura. É Victor; portanto, que causa a morte de sua amada, numa reviravolta com toques de telenovela mexicana. É um desfecho que espelha o de Sally Hawkins e o Homem Anfíbio em A Forma da Água (2017), um conto de Bela e a Fera fadado à tragédia, mas que encontra na finitude uma forma de libertação seja para renascer como uma princesa do fundo do mar, ou neste caso, para transcender no doce abraço da morte, na mais pura tradição Romântica.


O próprio Monstro de Elordi vai encontrar sua imortalidade nos mortos que compõem sua existência mas a identidade das suas partes não ditam quem ele realmente é. É preciso matar suas origens, sua família, seu pai, para poder viver autenticamente. Del Toro, em tom surpreendentemente queer, advoga pela destruição dos laços parentais (e toda a repressão que eles representam) pelo mero direito de existir do jeito que é.


Da mesma forma, para um filme necrófilo (elogio) feito das partes de Shelley, Whale, Fisher, Branagh, Isherwood e Bachardy, e que ganhou vida graças às maquinações de um conglomerado norte-americano, é a assinatura de Del Toro que fala mais alto. As referências estão lá apenas como bagagem cultural, e não como um exercício nostálgico vazio. Os acenos aos autores passados que de alguma forma permeiam o corpo desse filme são, assim como as lembranças do Monstro, vagas recordações de sonhos distantes que reverberam mas não informam suas reais intenções. Projetos mais pessoais como esse tendem ao espalhafatoso por perder o foco, revelando o pior e o melhor do seu respectivo criador, pois expõe as vulnerabilidades do diretor mas também sua grandeza, sua força. E aqui, quando essa grandeza se torna evidente e atinge o sublime, é transcendental. Um antídoto para a frieza hiper-controlada do Nosferatu (2024) de Eggers, serve o melodrama em ponto de ebulição "caliente" e espalhafatoso como toda boa novela da Televisa, melado em fluídos espessos de vida e morte como toda boa literatura Romântica. Talvez o filme Gótico definitivo para essa nova década de 20 antropofágica, contraditória, letárgica… uma paisagem apocalíptica onde frígidos simulacros digitais substituem o calor humano, mas que ainda nutre alguma fé na humanidade em meio ao fim do mundo, alguma esperança de ver o sol nascer de novo.


ree

bottom of page