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[Rebobinando] Desafio do Além: a assombração da cis-heteronormatividade

Sejam bem-vindos ao [Rebobinando], a coluna do Esqueletos no Armário que te levará de volta aos tempos de locadora para tirar a poeira do VHS (ou do DVD) e revisitar alguma obra, seja ela um clássico memorável ou uma pérola esquecida que precisa de um pouco mais de carinho. Chega junto, liga a TV e não se esqueça de rebobinar antes de devolver!


 

Muito antes de A Maldição da Residência Hill, a famosa série da Netflix lançada em 2018, o mundo conhecia a infame mansão mal-assombrada no filme britânico Desafio do Além (The Haunting no original), dirigido por Robert Wise e lançado em 1963. Ambas são algumas das diversas adaptações do livro “A Assombração da Casa da Colina”, escrito por Shirley Jackson em 1959. Um ponto que se manteve constante nas três obras é a presença de personagens queer, trabalhados de formas diferentes, pois de 1959 até 2018, a percepção destas identidades passou por diversas ressignificações, tanto no gênero do terror quanto na mentalidade social.


O objetivo deste texto não é fazer um apanhado de anos da mentalidade queer, até porque esse assunto é praticamente inesgotável, mas sim pensar como o filme de Robert Wise trabalha com o tema. Na trama, o Dr. Markway pesquisa a existência de fantasmas e do sobrenatural, e, por isso, se interessa pela Hill House, uma mansão de 90 anos conhecida por sua história de violência e mortes. Junto com ele estão Luke Sanderson, herdeiro da casa, a clarividente Theodora e a insegura Eleanor "Nell" Lance, cujos dons psíquicos a transformam no instrumento de ligação com os espíritos da velha mansão. Gradativamente, eles percebem que os eventos estranhos em Hill House são mais do que lendas.



Conforme o filme avança, é possível perceber um forte subtexto queer nas personagens Eleanor e Theodora, que não é mérito apenas do roteirista, pois na obra de Shirley já havia uma interpretação queer da relação entre as duas, apesar da autora negar veemente. O roteiro as aproxima a cada cena, construindo uma relação entre as duas com um tom homoerótico subentendido. Entretanto, Nell, que aceita participar da experiência de Markway como uma forma de escapar da vida comum que vivia, entra em conflito com seus sentimentos conforme as assombrações da casa a perseguem. Essa confusão mental culmina em um diálogo, quase no final do filme, em que Nell acusa Theodora de ser um monstro, claramente aludindo à identidade queer que a mesma apresenta, afinal esta personagem é tratada no filme como alguém "diferente". Nesse momento, Nell recusa a aproximação com Theodora, afirmando que está apaixonada pelo doutor e que deve ficar na residência Hill.


O contexto em que o filme foi lançado nos permite fazer algumas reflexões sobre a obra. No Reino Unido, a British Board of Film Censors buscava a qualquer custo eliminar qualquer conteúdo “subversivo” nas narrativas, em um estilo semelhante ao código Hays, dos Estados Unidos, que, dentre diversas regras, proibia a representação de personagens que fugissem da heteronormatividade. Tal código só deixaria de existir nos EUA em 1968, depois de uma década de pressão popular e emergência de movimentos feministas, antirracistas e LGBTs. Porém, desde os primeiros anos dessa censura, tanto nos EUA quanto no Reino Unido, diretores e diretoras buscaram inserir personagens LGBT’s em suas obras de forma implícita, tanto para demonizá-los quanto para tratar de temáticas relacionadas, como a aceitação e o preconceito.


A inserção de Desafio do Além em alguma destas perspectivas é bem debatida. Enquanto existe aqueles que tratam Theodora como a clássica lésbica predatória, que acaba por corromper Eleanor, já que a última supostamente evidencia isso no diálogo acusatório citado anteriormente, outros, eu incluso, enxergam a obra a partir de uma perspectiva diferente. É possível assistir o filme vendo Eleanor como uma jovem que não se encaixava naquilo que se esperava de uma mulher branca e heterossexual no Reino Unido, ideia essa que podemos compreender em uma das primeiras cenas, em que ela ainda está na casa de sua irmã. Ali vemos todo o desconforto e a sensação de “não-pertencimento” que Eleanor vive diariamente. Ao chegar em Hill House, é como se ela passasse a ser “assombrada” pela confusão que surge a partir do momento em que, pela primeira vez em toda sua vida, ela está em uma realidade diferente. Quando conhece Theodora, as duas se conectam rapidamente, e essa relação passa por altos e baixos, mais baixos eu diria, conforme Eleanor vai se afundando nos sentimentos conflitantes que a casa provoca nela, como se houvessem forças sobrenaturais fazendo com que ela busque ficar em Hill House e se apaixonar pelo doutor Markway, negando aquilo que era diferente, personificado em Theodora.



No filme, a casa tem um papel muito importante, ela é uma entidade por si só. Dale Bailey, no livro “American Nightmares”, trata do assunto das casas mal-assombradas, mostrando que em muitas obras elas servem como um recurso metafórico para as estruturas opressivas da sociedade. Hill House, então, estaria fazendo com que Eleanor finalmente se encaixasse em um padrão de cis-heterossexualidade, ela é a única afetada justamente por ser a única que ainda se questionava sobre qual era o seu papel na sociedade. Nell não chega na residência apaixonada por Markway, é um sentimento que se constrói conforme ela vai experimentando a atmosfera opressiva e mal-assombrada da casa, gerando um sentimento de confusão que culmina em sua morte, algumas cenas depois de descobrir que seu “grande amor” já era casado. Sem perspectiva de encaixe na sociedade, a gente pode pensar que a influência que Hill House exerce em Eleanor a leva à morte que, dentro de uma noção cis-heteronormativa, é o único destino possível para “alguém como Eleanor”.


Wise, assim como Jackson, construíram obras ambíguas (apesar do diretor ter confirmado o subtexto queer), que permitem diversas leituras da identidade de Eleanor e Theodora. O interessante do filme é que Theodora não age como a suposta lésbica predadora, uma construção de personagem muito comum no terror, pois a mesma em nenhum momento tenta seduzir ou "corromper" Eleanor. Em todo momento, é Nell quem entra em um literal “gay panic” na presença dela, gerando, por fim, um sentimento de repulsa. Novamente, é possível entender esse momento como o ponto alto da influência da casa sobre a jovem. Ela confunde a mente de Nell, fazendo-a acreditar que a culpada pelas assombrações e por tudo o que aconteceu é Theodora. Isso é muito parecido com a realidade de pessoas queers atualmente, que são impedidas pela sociedade cis-heteronormativa de expressarem-se da maneira que se sentem confortáveis, gerando um sentimento de culpa em nós (falo enquanto homem gay), como se fosse um problema sermos e agirmos dessa forma. O monstro, então, passa a ser aquele que age como gostaríamos de ser, aquele que consegue se expressar verdadeiramente. Em nenhum momento Theodora age para “afetar” Nell, mas Hill House faz ela pensar (uma metáfora para homofobia internalizada?) que o simples fato de Theo estar ali já é suficiente para explicar tudo de ruim que acontecia na casa. O monstro é o outro, que é igual a nós.



Seja você adepto da ideia de que Desafio do Além presta um desserviço ou partilhe da interpretação expressa aqui, a obra de Wise é importantíssima para discutir o ser queer na sociedade contemporânea, valendo a pena reservar um tempinho para assistir este clássico. Além dessa reflexão, com certeza é um filme que te deixará apreensivo e com muito, mas muito medo. Acho que um dos grandes méritos de Desafio do Além é tratar de todas essas temáticas dentro de uma narrativa que, se você quiser simplesmente assistir para ver alguns adultos sofrendo na mão de uma casa assombrada, o filme te permite. Mas claro, se você é uma pessoa LGBT, fica bem mais complicado ignorar o forte subtexto queer da obra. Seja para assistir numa noite chuvosa de sexta-feira, acompanhado de brigadeiro, seja para debater o ser queer numa cadeira de gênero da faculdade, Desafio do Além faz jus ao seu status de clássico do terror. Se você quer saber mais sobre o filme e todas as adaptações do clássico de Shirley Jackson, o Esqueletos já tem um podcast sobre o assunto, que você pode ouvir clicando aqui:


*O nosso podcast também está disponíveis em todas as outras plataformas.

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