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Foto do escritorJoão Neto

Redescobrindo "Garota Infernal" como um clássico feminista contemporâneo

Atualizado: 18 de set. de 2021

Quando Diablo Cody ganhou um Oscar de melhor roteiro original por Juno (2007), este era seu primeiro e único trabalho no currículo. Mas não é como se ela fosse novata na escrita. Foi justamente seu tom ácido que chamou atenção do produtor Mason Novick, depois dele ler seu blog e o livro "Candy Girl", onde ela recontava com bom-humor o ano em que trabalhou como stripper, após desistir de seu frustrante trabalho.


Não sei se vocês lembram, mas Juno foi uma coisa grande em 2007, quase um acontecimento. No filme, Ellen Page interpretava uma adolescente de 16 anos que engravida acidentalmente e precisa considerar suas opções: o aborto ou adoção. São temas delicados (e mais de dez anos depois, ainda parecem ser), mas a escrita de Cody não apenas trata seus personagens com tamanha sensibilidade e respeito, mas também traz uma visão interessante da juventude. Com diálogos espertos e divertidos, ela se conectou com o público jovem de uma forma única.



Um nome quente em Hollywood, Diablo logo recebeu carta branca para fazer qualquer projeto que quisesse. Todos os estúdios competiam para produzir seu próximo passo. Ela então resolveu aproveitar essa oportunidade de liberdade criativa para realizar seu sonho de fazer um filme de terror que explorasse uma amizade feminina, envolvesse uma protagonista que se alimentasse de garotos e brincasse com algumas convenções do gênero. Para isso, ela contou com a ajuda da diretora Karyn Kusama. Essa ideia sempre a atraiu pois ela notava que o terror era feminista - mas de uma maneira distorcida. "O último sobrevivente nos filmes de terror são sempre mulheres", disse em uma entrevista. "Nós queríamos subverter o modelo clássico da mulher sendo aterrorizada. Eu quero escrever papéis que atendessem à elas. Eu quero contar histórias de uma perspectiva feminina. Eu quero criar papéis bons para atrizes onde elas não são apenas acessórios para os homens".


Basicamente falando, Jennifer's Body é sobre uma líder de torcida que volta dos mortos após um sacrifício dado errado, mas agora está possuída por um demônio que a faz comer garotos para manter sua vitalidade. Em sua essência, o roteiro de Cody explora não apenas as dinâmicas adolescentes, mas a intensa amizade entre duas amigas de infância: a nerd Needy (interpretada pela Amanda Seyfried e cujo apelido é genialmente derivado da palavra "carente") e sua parceira popular Jennifer (Megan Fox). É uma sátira não apenas sobre a objetificação do corpo feminino (e o título original do filme não é só uma referência à canção homônima da banda Hole), mas uma sátira sobre esse tipo de relações numa fase da vida onde tudo é muito intenso. Ela flerta com temas que vai desde a codependência à autodescoberta.



Embora Cody admita que tinha noção de que o roteiro era "estranho", fora da curva e não tão comercial, ela não imaginava o despreparo da distribuidora para lidar com o projeto. Com Megan Fox estrelando, a intenção do estúdio era vender o filme para homens, vindo de seu trabalho nos filmes Transformers (onde sua personagem extremamente sexualizada a transformou num dos maiores sex symbols de Hollywood desde Marilyn Monroe). Durante a primeira sessão de testes do filme, o departamento de marketing separou dois grupos de audiência para avaliar suas reações: o primeiro eram pessoas que haviam gostado de Juno (um filme de gênero completamente diferente de Jennifer's Body) e o segundo era composto por homens héteros, com o foco etário de 18-24 anos.


Foi um desastre.


O primeiro grupo ficou horrorizado, pois não sabia que estaria vendo um filme de horror e estavam esperando algo "fofo" e "leve" como Juno. O segundo ficou altamente decepcionado pela ausência de nudez da protagonista. Em um dos cartões de avaliação deixados na sessão, havia no espaço de sugestões "more bewbs" ("mais peitos", ainda escrito errado).



Isso preocupou o estúdio, que levou a sério sugestões como esta, fazendo com que Diablo escrevesse uma carta defendendo seu projeto para o responsável pelo marketing e dando sugestões de como vender o filme apropriadamente. Ao questioná-lo sobre quais atributos o filme tinha a oferecer, ela recebeu como resposta três palavras: "Megan Fox gostosa".


Deu-se início a uma campanha de divulgação desastrosa que afetou diretamente o desempenho de Jennifer's Body na bilheteria. Além do verdadeiro público-alvo ter sido negligenciado, boa parte do marketing do filme enfatizava a infame cena lésbica entre Jennifer e Needy. Uma cena que inclusive é um ponto importante na trama, visto que as duas amigas em um momento de vulnerabilidade e tensão, se tornam mais íntimas.


Uma das propostas do time de marketing, inclusive, foi a Megan Fox fazer entrevistas ao vivo em sites pornô. Karyn Kusama, a diretora, implorou para que eles nem sequer mencionassem a ideia para Megan, pois isso ia devastá-la. O resultado disso tudo foi um fracasso, arrecadando $31 milhões de bilheteria com um orçamento de $16 milhões.



A recepção de Jennifer's Body foi uma experiência difícil, tanto para Fox quanto para Cody. Inconscientemente, a roteirista tinha o peso de entregar seu primeiro trabalho pós-Oscar e assistir seu filme amargar na crítica e bilheteria não foi o suficiente. Diablo recorda de ter sido escrutinada por colegas de profissão no Twitter. Foi devastador ver um projeto tão pessoal para ela - do qual ela tinha muito orgulho - ser arrastado na lama. Parecia que todos estavam esperando apenas uma oportunidade para castigá-la. Ela precisou de terapia para lidar com isso.


Para Megan, foi um pouco mais intenso. Além de ser o rosto do projeto, o filme foi lançado em uma época complicada de sua vida. Por anos, a atriz não gostava de comentar sobre sua experiência nos filmes Transformers. No início da produção do terceiro capítulo da franquia, ela foi demitida e escandalizada pela mídia após se posicionar sobre o comportamento do diretor no set. Esse foi o mesmo ano em que Garota Infernal foi lançado e ela tinha muita coisa no seu prato. A forma com que ela era hiper-sexualizada pela mídia era cruel e afetou seu psicológico. Durante as gravações da cena do lago, um paparazzi captou fotos suas seminua no set. Se sentindo arrasada, ela implorou para que alguém do estúdio barrasse as imagens - sem sucesso, pois chegaram na internet da mesma maneira.


Ela não era tratada mais como um ser humano, era uma boneca. Seu corpo não era mais seu. É nesse contexto que ela também relembra como a produção de Jennifer's Body foi libertadora para ela. Além de traçar paralelos com sua experiência com Hollywood (ela particularmente associa a cena do sacrifício de Jennifer à isso), interpretar uma personagem tão sem-filtro parecia um escape, quando ela pessoalmente tinha que medir o que falava.



Dez anos depois, Jennifer's Body foi redescoberto não apenas como um clássico cult, mas também como um clássico feminista, e parece ter encontrado o carinho que deveria ter recebido desde o início. Hoje, o filme se mostra à frente de seu tempo e funciona talvez ainda melhor do que quando lançado. Diversos sites, em especial este texto do Vice e este da Vox, foram responsáveis por trazer à tona essa reavaliação de um filme que, pelo menos na grande mídia, ainda estava estigmatizado pela recepção da década passada.


Essa revisitação traz algumas questões pertinentes ao tópico, como a visão heteronormativa da crítica na época e o apagamento do público-alvo (o cis-feminino e LGBT). Por conta de seu marketing descuidado, é fácil pensar que Jennifer's Body é um filme que se aproveita do status de sex symbol de sua protagonista. Ele explora sim a sensualidade da Jennifer (e por consequência da Megan), mas não é apenas isso. O roteiro sarcástico de Cody, juntamente com a direção de Karyn Kusama, são essenciais para criar uma narrativa feminina respeitosa e que jamais foram direcionadas para esse público masculino, consequentemente frustrando-os por não respeitar suas expectativas. Não é coincidência que algumas das [poucas] críticas positivas da época, que reconheciam a qualidade do roteiro, foram escritas justamente por mulheres. Mary Pols, da revista Time, escreveu: "Há um uso muito inteligente do camp e caracterizações de personagens afiadas". Rene Rodriguez do The Miami Herald elogiou "a exploração do gênero como metáfora para angústia adolescente, sexualidade feminina e o elo estranho, e por vezes corrosivo, entre garotas que acreditam ser melhores amigas". Isso só realça a importância do espaço de pessoas LGBTs e mulheres em veículos de crítica especializada.


O público cis-hétero masculino pode até achar isso, mas nem tudo é sobre ou para eles.



Ano passado, no aniversário de 10 anos do filme, Diablo e Megan se entrevistaram sobre suas experiências para um vídeo especial no canal do Entertainment Tonight. Juntas, elas compartilharam não apenas algumas das situações infelizes citadas nesse texto, mas também coisas boas. Para Fox, apesar do período conturbado de sua vida, interpretar Jennifer foi o seu projeto favorito da carreira. Desde então, ela voltou a trabalhar com Michael Bay em As Tartarugas Ninja (onde se sentiu menos sexualizada no papel da repórter April) e no que era para ser uma substituição rápida, acabou se tornando parte do elenco recorrente da sitcom New Girl.


Cody escreveu outras pequenas joias do cinema com Jovens Adultos (2011) e Tully (2017) - que inclusive, deixo minha recomendação. Em meados de 2015, ela tentou transformar Jennifer's Body em uma série de TV, mas nenhum canal sequer a dava chance de apresentar sua proposta. "Quem vai investir em algo baseado num fracasso de bilheteria?". Para isso, sua resposta sempre era Buffy - A Caça-Vampiros (1997-2003), série que deu uma carreira à Sarah Michelle Gellar, mudou o formato de fantasia adolescente pelos anos que se seguiram e, vejam só, foi baseada em um fracasso de bilheteria lançado em 1992.


Questionada por Megan se ela se preocupa que a possível série não corresponderá o nível do filme, Cody responde: "Estou tão conectada a este projeto que eu sei o que é melhor para ele. Eu não pisaria na bola."



Aproveitando para deixar o nosso episódio do podcast onde falamos sobre Jennifer's Body, discutimos sua relevância hoje em dia e comentamos um pouco do que foi contado no artigo.




*Artigo baseado na thread publicada no nosso Twitter em 29 de Abril de 2020.

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