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Foto do escritorPietra Vaz

[48ª Mostra SP] Em 'Senhor dos Mortos', do pó viemos e aos bytes retornaremos

Esse texto é parte da cobertura que o Esqueletos no Armário está fazendo da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo como veículo credenciado, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queer e de sexualidade.

Logo no começo de À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1963), o olhar afervorado de Zé do Caixão atravessa a câmera enquanto ele sana perguntas complexas com respostas diretas. O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. Simples assim. Não há motivos para complicar coisas tão óbvias. Mas é claro que nós fazemos isso.


Na verdade, uma das características mais notáveis do ser humano é a capacidade inata de criar problemas desnecessários no mundo, mesmo com boas intenções. Isso data de nossos primórdios: começamos a usar o fogo para cozinhar, e por isso hoje as calotas polares estão derretendo. Criamos a escrita cuneiforme para registrar quantas ovelhas tínhamos no pasto, e por isso hoje passamos oito horas do dia preenchendo planilhas. Inventamos aparelhos para conversar com pessoas a longas distâncias, e por isso hoje ficamos encarando vídeos curtos em telas brilhantes até detonar nossos ciclos circadianos.


Essa criação de problemas se aprofundou com o desenvolvimento vertiginoso das novas tecnologias. Tudo é smart, tech, 4.0, cloud-based, IoT-enabled, AI-powered e outros termos que não estão na Bíblia. E o pior é que os problemas foram se tornando cada vez mais desnecessários, graças à promessa de eficiência eternamente escalável feita pelo Vale do Silício. Digitalize suas ideias, automatize suas tarefas! Conecte-se ou pereça!


Se bem que, nessa perspectiva tecnológica que fagocita todas as áreas de ação humana, perecer também é uma oportunidade de inovação. "Death as a service": eis o fio condutor de The Shrouds (2024), dirigido por David Cronenberg. Lançado no Brasil com o título O Senhor dos Mortos, o filme estrela Vincent Cassel como Karsh, um cara que dirige um Tesla.



Viúvo e com uma dificuldade tremenda em lidar com a morte da esposa Becca (Diane Kruger), Karsh acaba criando a GraveTech, um negócio disruptivo para os enlutados. Esqueça tudo o que você sabe sobre sepultamento, o futuro chegou. Ao ser envolvido pela mortalha hipertecnológica da GraveTech, o cadáver é escaneado e uma imagem em alta resolução do corpo é gerada, sendo atualizada em tempo real. Por meio de um aplicativo e por telas acopladas em cada lápide, os vivos podem continuar vendo seus entes queridos sempre que quiserem, acompanhando seus processos de decomposição.


Não surpreende que Cronenberg explore, mais uma vez, a materialidade do corpo. Sua abordagem autoral mostra, mais uma vez, o motivo pelo qual o diretor é um revolucionário do body horror. Suas obras não retratam a deformação física com repulsa, mas sim admiração. Por mais grotescas que sejam as representações corporais em seus filmes, tudo vem de um fascínio pela simultânea grandeza e vulnerabilidade do corpo humano. Toda a realidade é canalizada pelo corpo, que é ao mesmo tempo amo e refém de tecnologia, sexualidade, mutabilidade e mortalidade.


O aspecto da mortalidade, desta vez, é bastante autobiográfico. Carolyn, esposa de Cronenberg, faleceu de câncer em 2017, após 43 anos de relacionamento. Em entrevista à Variety, ele fala que a produção de O Senhor dos Mortos não foi catártica e que ele não vê a arte como terapia, mas revela que um elemento do filme foi copiado de sua experiência: assim como Cronenberg, Karsh quis ficar junto do corpo da esposa quando ele foi enterrado. Não por querer morrer, mas simplesmente por querer estar junto.



É curioso como o luto de Karsh é retratado de maneira tão extrema e, ao mesmo tempo, tão fria. Afinal, é intenso o bastante para que ele queira seguir acompanhando o corpo de Becca, e impassível a ponto de ele seguir fazendo isso mesmo quando ele alcança um estágio avançado de decomposição. É como se Karsh não estivesse exatamente em sofrimento, mas apenas sentindo uma falta muito grande da esposa, se é que existe ausência sem dor. Ele tem conforto em se sentir próximo do corpo dela - já que o corpo é a única realidade que existe -, ainda que ela já não seja muito mais do que ossos.


Na primeira sessão do filme na 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o público efervesceu de aversão quando entendeu o que a GraveTech fazia, com risos, burburinhos e muita gente se ajeitando na cadeira. A ideia de um aplicativo para ver a putrefação de uma pessoa amada é de fato absurda e hilária, porque nunca existiria de verdade. Apesar das exceções, a morte é encarada de maneira parecida por várias sociedades e religiões, e isso inclui um tabu nunca questionado sobre a decomposição dos corpos. Nós nunca falamos sobre isso como algo que deva ser superado, e a exumação, por exemplo, que exige o contato da família com os restos mortais de um ente querido, é um processo doloroso e evitado ao máximo.


Nossa cultura ocidental foi construída como um grande mecanismo de negação à consciência da mortalidade. É o que Ernest Becker defende em A Negação da Morte, publicado em 1973: tudo o que fazemos na vida é buscar a imortalidade de algum jeito. A humanidade fica inventando problemas justamente para recalcar os pensamentos de morte. Tudo o que fazemos na vida, no fim das contas, é uma busca simbólica pela transcendência. Inconscientemente, eu mesma estou escrevendo este texto como parte do meu legado, porque espero que ele seja mais longevo que eu e traga mais sentido à minha vida tão arbitrária. Ao mesmo tempo, todos nós evitamos pensar na morte de forma consciente para minimizar o sofrimento, porque no fundo não acreditamos que somos capazes de morrer.



A partida dos outros é uma aflição indescritível por muitos motivos, e um deles é o de trazer a inevitabilidade da própria morte para a consciência. Ainda que tenhamos uma postura firme, com um ego que lida bem com a angústia existencial da mortalidade, não há memento mori que aguente a corrupção da memória idealizada de pessoas amadas. Todo o serviço funerário é orquestrado para mascarar a realidade da decomposição, com cadáveres embalsamados, maquiados e preparados para que pareçam em paz. Sem nada disso de cheiro ruim e cor estranha, até porque o conforto emocional, muitas vezes, vem de pensar que o fim da vida implica uma restauração completa da integridade. Ver o corpo se decompondo iria contra a impureza da salvação - que, ainda que não faça parte de nossa crença, compõe nosso imaginário.


Por tudo isso, a GraveTech é uma ideia genial de Cronenberg. É um negócio que poderia muito bem ser real pela sua configuração, mas jamais existiria por seu conteúdo - uma distopia formal, mas não material. Em um mundo onde tudo é tecnológico, o diretor conseguiu encontrar o único nicho de mercado em que a digitalização jamais seria aceita. E é verdade que inúmeros negócios surgem mais por estratégia de mercado e obsolescência planejada do que por demandas reais da sociedade - lembra do que eu falei sobre inventar problemas? -, mas, para prosperarem, precisam de aceitação social.


Ao monitorar o corpo de Becca, Karsh começa a notar anomalias nos ossos do cadáver, e procura sua cunhada Terry, também interpretada por Kruger, para entender o que poderia estar acontecendo. É o início de uma aventura confusa, obsessiva, engraçada, lasciva e paranoica, em que tudo o que acontece parece ter uma motivação suspeita. A confiabilidade de pessoas e de assistentes virtuais comandadas por inteligência artificial é questionada a todo tempo, e as respostas encontradas não são satisfatórias. Mas como poderiam ser? Em um drama que gira em torno da mortalidade, não há mesmo satisfação.


A criação de uma narrativa conspiratória envolvendo russos, chineses e, veja só, islandeses, acaba sendo uma tentativa de justificar a morte de Becca. Talvez a morte resultante de um grande esquema internacional que reaquece a Guerra Fria seja mais compreensível do que a morte decorrente de um câncer violento. Talvez encontrar culpados e motivos seja mais fácil do que viver um luto resignado. E acompanhar a decomposição do corpo da pessoa amada, enfim, talvez não seja um ato estoico de aceitação da morte, mas sim uma nova maneira de tentar controlá-la. Uma nova maneira de criar um novo problema.


 

THE SHROUDS

2024 | França/Canadá | 119 min.

Direção: David Cronenberg

Roteiro: David Cronenberg

Elenco: Vincent Cassel, Diane Kruger, Guy Pearce, Sandrine Holt



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