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[Crítica] 'Enterre Seus Mortos' talvez tenha um coração grande demais

  • Foto do escritor: Luiz Machado
    Luiz Machado
  • 25 de out. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: há 6 horas

Nas últimas semanas, tenho feito uma maratona de Ed Wood. Há uma beleza estranha na forma como o “pior diretor de todos os tempos” conduzia suas histórias, guiado quase exclusivamente por instinto — o que Tim Burton chamou de um “tipo de poesia redundante, daquela que o autor leva cinco frases para dizer algo que poderia ser expresso em apenas uma”, algo que, segundo ele, dava a seus filmes “uma sensação surreal e estranhamente sincera”.


Pode um emaranhado de ideias se tornar um filme? Essa pergunta me acompanhou enquanto assistia a Enterre Seus Mortos, novo trabalho de Marco Dutra (As Boas Maneiras, Quando Eu Era Vivo, Trabalhar Cansa e outras obras notáveis). E, honestamente, me peguei pensando: acho que isso me lembra Plano 9 do Espaço Sideral.


Em um futuro — é futuro? — Edgar Wilson (Selton Mello) recolhe animais mortos na beira da estrada. No interior, tudo é mato, terra e decepção. O mundo está acabando, o agro não é pop, e o Brasil, como o conhecemos, virou apenas a lembrança distante de uma sessão de Titanic em 3D nos cinemas. Tudo o que parece ter restado são os cadáveres dos bichos e a vidinha do interior, agora dominada por um culto que promete uma vida melhor longe daqui.


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O livro original de Ana Paula Maia se torna quase uma linha de descrição na odisseia que Dutra constrói aqui. É um épico contido, mas ainda assim megalomaníaco, e ao mesmo tempo um filme B assumido. Ele fervilha de ideias, conceitos e imagens fascinantes que parecem se voltar contra o público a cada minuto. Na saída da sessão, ouvi uma moça resmungar “que perturbação” para o acompanhante, e, ao perguntar a colegas o que acharam, a resposta mais comum foi: “preciso pensar, tem muita coisa”.


Entre diálogos delirantes, humor abrasivo e a criação de um universo próprio, Dutra me faz pensar novamente em Ed Wood, especialmente na maneira de seguir o instinto acima de qualquer lógica de mercado. Enterre Seus Mortos não é comercial, não tem cara de streaming e tampouco se encaixa no molde de horror de festival. O que ele atinge é aquela sensação estranha que só uma reportagem televisiva duvidosa sobre chupa-cabras em cidades pequenas consegue provocar: não sei se o que vi é real, nem se isso importa, mas algo ali me inquieta o suficiente para querer conferir as trancas da casa antes de dormir.


Logo na cena de abertura, um Caetano Gotardo ensanguentado anuncia que precisamos deixar este planeta; chuvas de pedras, direto de Carrie, de Stephen King, caem sobre a cidade; carne já não é opção de alimento, contaminada por algo nunca explicado; Marjorie Estiano, com a peruca mais bonita que você verá este ano, enlouquece ao ter uma visão lovecraftiana enquanto repete o quanto odeia crianças; Gilda Nomacce declama poesias estranhas enquanto posa como um manequim; e Selton Mello, num registro quase indecifrável, murmura sobre um demônio chamado Gilson em tons tão baixos que desafiam qualquer legenda. É, de fato, uma perturbação, talvez deliciosa, talvez exasperante, dependendo apenas do quanto você está disposto a embarcar nela.


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É quando o filme tenta dar alguma razão aos seus mistérios que ele perde um tico do brilho. Há um momento longo, quase exaustivo, em que os personagens de Selton Mello e Danilo Grangheia, um padre gay que foi excomungado, passam a explicar a mitologia de um dos elementos sobrenaturais de forma um pouco didática. A beleza do insólito se desfaz na tela, abrindo espaço para algo que não se encaixa. O resultado é uma tangente frustrante que tira a agência e a complexidade de Edgar Wilson, amargando o desfecho e tornando o epílogo interminável. Às vezes, é melhor deixar o mistério simplesmente ser.


Mas, entre trancos e barrancos, o resultado é completamente único. Vi muitas pessoas dizendo que o filme é perdido, mas, honestamente, acho que ele sabe exatamente o que está fazendo. É o tipo de experimentação que só alguém disposto a abraçar o horror em todos os seus absurdos e contradições consegue realizar. É um filme feito por quem quer fazer o filme que quer, e cabe a você lidar com isso.


Pelo bem ou pelo mal, poucos estão dispostos a realizar o tipo de cinema que Dutra propõe no Brasil. E, para todos os efeitos, Enterre Seus Mortos talvez tenha apenas um coração grande demais.


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ENTERRE SEUS MORTOS

2024 | Brasil | 128 min.

Direção: Marco Dutra

Roteiro: Marco Dutra & Ana Paula Maia

Elenco: Selton Mello, Danilo Grangheia, Marjorie Estiano, Betty Faria, Gilda Nomacce


Esse texto fez parte da cobertura que o Esqueletos no Armário está fazendo da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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