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[49ª Mostra SP] 'História do Som' é romance gay para quem não gosta de ver homens se beijando

  • Foto do escritor: Luiz Machado
    Luiz Machado
  • há 16 minutos
  • 4 min de leitura

A primeira coisa que me chamou a atenção durante a sessão de História do Som foram, de fato, os sons da sala: fungadas discretas, suspiros contidos e cochichos. Olhei ao redor e percebi que boa parte do público parecia tomado por uma emoção que a mim escapava. Tentei barganhar comigo mesmo: será que estou enfadado do ritmo da Mostra? Será que sou amargo? Será que deixei passar alguma chave escondida?


Ao acender das luzes, as reações se mostraram contraditórias. Havia os que enxugavam lágrimas, outros pareciam irritados e ouvi claramente uma moça dizer “é tão frígido”. Desde então essa palavra me persegue sempre que penso nele: frígido.


E do pior tipo, o frígido que finge ser sincero, mas parece envergonhar-se de sentir.


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A sinopse de IMDB do filme é bastante direta: “Dois jovens, durante a Primeira Guerra Mundial, decidiram registrar a vida, as vozes e a música de seus compatriotas americanos”. Parece apropriada a falta de menção ao romance entre os personagens. Em entrevista recente, o diretor Oliver Hermanus afirma que cortou as cenas de sexo entre os personagens para “não reduzir a relação deles a apenas isso”. Ele dizia querer conexão, amor, algo maior que o corpo. E eu me pergunto: por que o sexo distanciaria o público da ideia de amor? Por que o desejo diminuiria o afeto desses personagens? Não é justamente o corpo, o toque, o impulso que dá matéria ao sentimento? Essa separação me soa familiar. Parece quase uma regra não-escrita em produções LGBTQIA+ de grande circulação: para que o amor entre duas pessoas do mesmo gênero seja legítimo, espera-se que ele demonstre “algo a mais” que a simples luxúria permitiria. Em outras palavras: para ser válido, o amor gay precisa provar que ultrapassa o desejo.


Mas a questão do desejo como tabu perpassa tanto a estética quanto a estrutura narrativa. A representação da sexualidade homoafetiva no cinema é, até hoje, regulada como anômala ou marginal. E é na necessidade de validar essas relações, sem permití-las bater de frente com um público que não gosta de ver homens se beijando, que acaba por assimilá-las. Me lembrou um pouco, perdoem-me a infâmia da comparação, o que foi feito com as personagens lésbicas na versão nova de Vale Tudo. Cecília e Laís ganham uma repaginada narrativa, garantindo que elas sejam declaradamente casadas, vivam juntas e até estejam num processo de adoção, o que já é um grande avanço em termos de representatividade na TV aberta. Porém, com o passar dos capítulos, as personagens nunca se beijam, trocam carícias ou demonstram qualquer forma de intimidade física, algo que continua sendo naturalizado entre casais heterossexuais deste tipo de folhetim. Essa ausência reforça um padrão histórico da teledramaturgia brasileira, em que personagens lésbicas, e homoafetivos no geral, podem existir, mas não amar de forma plena; seu afeto é permitido apenas enquanto ideia, não enquanto gesto.


O silêncio em torno de certos corpos e desejos continua como padrão. Assim, voltando para A História do Som, quando um filme gay feito para festivais e premiações opta por filmar a intimidade quase às sombras, reduzindo toques a fragmentos de segundos, ele não está apenas sendo estilístico.


É então que o tema “formar família” surge. Ao perceber tudo o que lhe foi negado, o tempo, a liberdade, a possibilidade de existir sem medo, um personagem pergunta: “você quer ter filhos? Quer ter uma família?”. A dúvida toca, mas também pesa, pois sabemos que esse amor ambientado no início do século XX está, por definição, fadado ao fracasso. Um romance gay naquele contexto carrega a tragédia imposta pelo mundo, mas o filme parece recuar diante dela. Ele não a enfrenta, apenas a observa. Lava as mão e repete “que triste!” para si mesmo. E para uma história que quer tanto ser arrebatadora, é ingenuidade achar que dormir de conchinha seja ato revolucionário.


Se não há corpo, se não há desejo vivido, se a intimidade é retratada com pudor excessivo, o que resta é elegância decorativa. E a elegância pode ser frígida.


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Além dessas questões de representação que me incomodaram, não resta muito a me oferecer. O desenvolvimento com a música é interessante, o som é o motif principal da narrativa, não apenas como trilha ou artifício estético, mas como forma de expressão sensorial. O personagem de Paul Mescal se conecta à música de maneira quase sinestésica, traduzindo emoções que ele não consegue articular em palavras. O filme toca brevemente nessa dimensão, sugerindo que a música, e não o discurso, é o verdadeiro meio de comunicação entre os personagens. Mas, infelizmente, até esse lampejo narrativo acaba sucumbindo aos cacoetes deste tipinho de produção. O restante é absolutamente familiar a todos os códigos, figuras, cenários, dilemas que já vimos sendo trabalhados muito melhor antes… Mais especificamente em 2005… Pelas mãos do Ang Lee.


Aqui, temos as mesmas batidas e o equivalente de cenas icônicas da história dos cowboys, mas feitas sem nenhum tempero. Para todos os efeitos, talvez A História do Som fosse muito melhor se tivesse a Anne Hathaway aparecendo com perucas gradativamente maiores ao longo dele.


Esse texto faz parte da cobertura do Esqueletos no Armário da 49º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, dando enfoque na programação que tenha cruzamentos com o cinema de gênero, as temáticas queer e de sexualidade.
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