[49ª Mostra] O Beijo da Mulher Aranha sonha em technicolor, mas é espetáculo sem vida
- João Neto

- há 2 minutos
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Para mentes, olhos e ouvidos desacostumados com o submundo obscuro da Broadway, a ideia de transformar O Beijo da Mulher Aranha em um musical luxuoso pode parecer para lá de esquisita. O romance complexo de Manuel Peig desafiava as próprias convenções narrativas ao explorar os efeitos assombrosos da ditadura argentina, a masculinidade em tempos de repressão e o uso da arte e cinema no imaginário popular como uma válvula de escape ou alienação — tudo isso através da relação improvável entre dois companheiros de cela. Valentin é um prisioneiro político conectado a um grupo comunista que resiste à ditadura, enquanto Molina, um homem gay preso por “corrupção de menor”, passa seus dias sonhando acordado com seus filmes favoritos, entre eles, uma variação de Sangue de Pantera (1944) que traz a presença enigmática da tal “mulher aranha” do título. A manifestação mais conhecida da história é, claro, a versão de Hector Babenco, expatriado argentino no Brasil, que a adaptou para os cinemas em 1985 com Sônia Braga, transportando o contexto sociopolítico à realidade brasileira dos anos de chumbo, reconhecendo não apenas os paralelos de opressão mas a conexão direta que ambas ditaduras tinham entre si.
Desde então, a Mulher Aranha ressurgiu nos palcos na forma da grandiosa Chita Rivera, em 1993, transformando os delírios fantásticos em números musicais assinados pela dupla John Kander e Fred Ebb, cujo currículo acumula Cabaret, Chicago e outras contribuições históricas com Bob Fosse e Liza Minelli. Mesmo arrebatando 7 prêmios no Tony, incluindo o almejado Melhor Musical, Mulher Aranha pareceu não conquistar um impacto longevo na memória coletiva, limitando seu reconhecimento a uma estranhíssima homenagem em Katy Keene (sim, aquele horrível spin-off de Riverdale e que, sim, também assistimos).

Infâmia talvez não seja a melhor palavra para se atrelar a um acontecimento da Broadway abraçado pela obscuridade, mas definitivamente é um termo a ser utilizado quando uma nova adaptação insere Jennifer Lopez na conversa como a sucessora natural de Sônia e Chita nos sapatos da musa surreal Ingrid Luna, no que ela descreveu como um “papel dos sonhos”. Infâmia também é uma palavra que ressurgiu de novo e de novo em toda a minha experiência envolvendo essa versão, que teve sua estreia brasileira na 49ª Mostra SP marcada por contratempos técnicos (metade do filme foi exibido com a legenda fora de sincronia), forçando a equipe a interromper a projeção em uma cena envolvendo diarreia — com direito a Diego Luna de calças arriadas e bunda virada pra cima, paralisado na tela por alguns minutos.
Com uma carreira tão fascinantemente plural, mas raramente marcada por excelência, quanto a da Jenny from the Block, é difícil relembrar o quão interessante era sua filmografia antes de ceder às comédias românticas de estúdio e filmes de ação ruins que tanto a popularizaram. Despontando com uma performance memorável na biopic de Selena (1997 — sim, ela está ótima), Lopez trabalhou com Coppola, fez um Soderbergh, fez o cult classic estiloso A Cela (2000) e nesse meio tempo ainda teve tempo para cair no soco com uma Anaconda (1997). Entretanto, foi só em As Golpistas (2019) que as premiações, o público e pelo visto ela mesma relembrou que havia algo de curioso nela a ser explorado como atriz novamente. Aqui, almejando um reconhecimento de Melhor Atriz em um filme baseado num musical baseado num filme baseado em um livro, Lopez tenta reproduzir o encanto da Hollywood clássica e musicais em technicolor sob a direção de Bill Condon (também sugiro uma busca rápida na filmografia insana dessa mona).
Embora pareçam, a priori, pessoas tão diferentes, Valentin (Diego Luna) e Molina (um ótimo Tonatiuh) descobrem na convivência que compartilham muitas similaridades e prisões pessoais, exacerbadas pelas prisões sociais (e literais) da história. Valentin, um revolucionário idealista, despreza a ignorância política deliberada de Molina, que prefere perder-se nas memórias cristalizadas do cinema e da sua musa, Ingrid (Lopez) e do papel da Mulher Aranha, uma figura que representa não apenas a morte mas a dualidade de uma versão de si que Molina almeja ao reconhecer-se como mulher, mas que jamais alcançará. Com seus atos de cuidado e sua franqueza em relação à própria sexualidade, Molina abre Valentin a uma vulnerabilidade que ele nunca se permitiu sentir, arrependendo-se dos “eu-te-amos” nunca falados a um amor fora das celas, e conhecendo uma nova forma de intimidade no companheiro.

As recordações fílmicas de Molina servem, claro, para refletir os paradoxos emocionais dos personagens na realidade, mas Condon as utiliza também para ressaltar um deslumbramento com o cinema clássico e o impacto duradouro dessas imagens e figuras na memória popular e individual. É um elemento presente no livro e no filme, e que na peça não tem o mesmo destaque pelo próprio formato de espetáculo. Condon presumidamente entende que, de volta ao cinema, essa brincadeira metalinguística pode ter mais força, oferecendo piscadelas ao público que admira a tela prateada e um final mais catártico para seus protagonistas.
Porém, quando ele delimita por definitivo os dois lados, realidade e fantasia, numa decisão criativa que o próprio Bill Condon atribuiu à Fosse em Cabaret, acaba por realçar o quanto ele não é Bob Fosse. Com pouca organicidade entre os dois mundos, o filme sofre com a ausência de uma decupagem mais afiada e detalhista, que se interesse mais pelo movimento, pelo corpo, pela coreografia, optando por planos muito abertos e uma estaticidade que pouco lhe convém. Ocasionalmente, ele é salvo pelo gongo de um design de produção que abraça a artificialidade dos cenários, especialmente em números como “Where You Are”, “Gimme Love” e “Only in the Movies”, enquanto em outros a própria artificialidade nos distancia de uma imersão completa. A sensação é a de imposição de um deslumbramento por essa homenagem, pela ideia de retorno à forma clássica de se fazer cinema musical, mas o que fazia deles algo tão hipnótico e arrebatador simplesmente não está presente aqui.
No percurso, Condon tropeça em um tom ambivalente e por vezes inapropriado de comédia involuntária que empalidece a riqueza do texto original, tornando a própria narrativa coadjuvante perante ao mote de ode aos musicais e sua mensagem alegórica do cinema como uma ferramenta de mudança e transformação pessoal. Mas o que se monta é um paradoxo, ou melhor, uma armadilha onde parte de suas escolhas criativas (como adaptar canções inteiras para diálogos engessados) parecem contradizer o próprio discurso “anti-antimusical” adotado pelo diretor, despindo-as da força poética que tinham como versos melódicos e transformando-as em mea culpas políticos enrijecidos.

Há um esforço visível, tanto do filme quanto da própria Jennifer Lopez, em transformá-lo num star vehicle; isto é, um projeto que gira em torno da presença da atriz e do mito que sua figura carrega. Algo, inclusive, bastante comum, não seria o primeiro projeto pensado para servir de palco para uma artista pop no cinema. Lady Gaga e seu Nasce Uma Estrela (2018) e Ariana Grande em Wicked (2024) são bons exemplos recentes para entender o potencial desse tipo de projeto ao usar a imagem de fora para encorpar suas personagens de dentro.
Em certa medida, isso funciona; Lopez não interpreta exatamente uma personagem, mas uma ideia de mulher, um simulacro de estrela, um corpo-imagem que sustenta a narrativa por pura iconografia. No entanto, o que há de hipnose em Sônia Braga e de potência bruta em Chita Rivera se dissolve nela em algo liso, sem atrito, sem interior. Lopez permanece uma superfície. É bela, calculada, mas inerte. Em uma cena particularmente reveladora, sua personagem-dentro-do-filme-dentro-do-filme aparece caracterizada como Eva Perón e, claro, não é culpa dela, mas o gesto expõe ainda mais a artificialidade do que o filme tenta afirmar: a encenação do poder como fetiche de si mesma.
No fim, simbolicamente, os filmes não podem salvar Molina, mas talvez ofereçam a ele a oportunidade de ser sua própria musa; aquela que sempre sonhou e que, na verdade, nunca duvidou ser. Uma pena que, parafraseando a Da'Vine Joy Randolph em Os Rejeitados (2023), O Beijo da Mulher-Aranha como um todo não consiga nem sonhar um sonho completo.
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