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  • Foto do escritorAlvaro de Souza

[Livro] O mundo ideal de homens e monstras: a Argentina assombrada de Mariana Enriquez


"Study for Lady Macbeth", de Gustave Moreau, c. 1851.

Em 1976, um golpe militar levou a Argentina para o seu momento mais sombrio da história recente. Os menos de dez anos que a ditadura perdurou resultaram numa séria crise econômica, uma guerra perdida com a Inglaterra e uma verdadeira tragédia humanitária com milhares de mortos e desaparecidos. A ausência de projetos políticos e econômicos dos militares foram compensados com doses indescritíveis de violência. Com o fim do regime militar, a revolta popular era tanta que os governos seguintes não tiveram outra opção senão dar uma resposta a isso, resultando num dos poucos casos na América em que os ditadores não receberam anistia e foram julgados. Grande parte dessa revolta inflamada pela publicação em 1985 de Nunca Más; o livro era o relatório da Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas e os números alarmantes de desaparecidos geraram grande comoção popular.


Os julgamentos eram transmitidos na televisão, as denúncias dos sobreviventes e de militares dispostos a confessar revelaram crimes aterradores, um dos mais infames sendo os “voos da morte”: voos de avião de onde os prisioneiros semi inconscientes eram jogados de grandes alturas. Também se tornou conhecimento público que militares colocavam para adoção ou davam para serem criados por outros militares os bebês e filhos mais novos de presos políticos. Sabendo disso, as mães da Praça de Maio passaram a exigir não só o paradeiro dos filhos delas mas também dos seus netos. Hoje, se estima que o número de pessoas desaparecidas na ditadura argentina de 1976-1984 seja de 30 mil pessoas.


Golpes militares não eram uma novidade na história do país (uma ditadura já tinha acontecido na década de 60), mas o que ocorreu na década de 70 foi algo de uma brutalidade quase ritual. Não seria exagero considerar o evento mais traumático na história recente do país, traumático justamente por ser um evento ao qual se retorna constantemente, ao qual a memória não vai embora e molda eventos posteriores. Os monumentos fazendo referência à memória do evento, os relatos publicados e os protestos ainda em andamento pelas Mães da Praça de Maio não deixam o passado ir embora.


Foi nesse contexto que a escritora argentina Mariana Enriquez cresceu. Nascida em 1973, ela não só viveu a ditadura mas também os julgamentos públicos e o caos econômico que assolou o país em anos posteriores (em parte culpa do rombo causado pelos militares, em grande parte culpa das medidas neoliberais tomadas na década de 90). Em entrevistas, a autora já comentou sobre escutar conversas sobre vizinhos desaparecidos, sobre desaparecimento ser um tópico de conversa na escola e dos pais fazendo ela ouvir os depoimentos de torturados pela ditadura. Usando do gênero do terror, Enriquez criou para si uma voz única ao tratar dos traumas do seu país. Com uma escrita que mistura uma objetividade jornalística com o sobrenatural, Mariana descreve uma Argentina que é um território fantasma. Um local cheio de mortos sem túmulo vagando pelas cidades, de casas abandonadas pela especulação imobiliária e onde pessoas simplesmente desaparecem no ar.



Os Perigos de Fumar na Cama e As Coisas que Perdemos no Fogo são os dois livros de contos da autora publicados no Brasil pela editora Intrínseca e são uma bela visão da Argentina fantasmagórica da autora e do seu mundo cheio de narradoras obsessivas, inquietas e que já não aguentam mais. Com exceção de "Pablito Clavó" presente em As Coisas…, todos os contos são narrados e protagonizados por mulheres que tem seus desejos sombrios, angústias e vícios explorados pela autora que o faz com uma morbidez e uma crueldade ímpar. Para leitores obcecados pela autora, a publicação das duas coletâneas também permitem ver quais são os temas preferidos da autora (desaparecimentos, garotas jovens, vício, crianças vítimas de horrores inimagináveis, aparições), assim como a evolução da escrita dela dada a distância entre a publicação original deles.


Os Perigos de Fumar na Cama já nos apresenta o tema do passado traumático que não vai embora e permanece atormentando o presente com a sua aparência grotesca, seus odores e seus ruídos. "O desenterro da Anjinha" conta a história de uma protagonista que na infância gostava de cavar o jardim da casa da avó até o dia em que ela encontrou pequenos ossos enterrados. O seu pai diz que são ossos de galinha mas a avó desesperada fala que são de uma irmãzinha que faleceu ainda bebê e cuja visão do seu fantasma continuava atormentando ela até hoje. "Rambla Triste" é a história de uma turista visitando Barcelona e sentindo um cheiro horrendo permeando todas as partes da cidade, os amigos que a hospedam contam então a história sobrenatural por trás disso e como esse odor é uma vingança por uma violência que jamais vai cicatrizar.


"O carrinho" é sobre uma rua em que todos os moradores começam a lentamente enlouquecer e empobrecer após destratar um morador de rua. Em "Garotos perdidos", crianças dadas como desaparecidas voltam para casa todas num espaço curto de tempo. A princípio algo que parece motivo de alegria se mostra cada vez mais estranho. Como uma criança de oito anos desaparecida anos atrás volta exatamente igual? Como uma garota dada como morta pode aparecer novamente? "Quando falávamos com os mortos" fecha o livro com uma história sobre garotas adolescentes brincando de ouija num país lotado de mortos. Nesses contos, o passado fede, é uma visão grotesca, incomoda, às vezes fascinante e não vai embora nunca por mais que os personagens tentem. Os caminhos que restam é enlouquecer ou aprender a lidar e se divertir brincando com um bebê fantasma putrefato.


Para além dessas histórias, o livro ainda entrega ao leitor a narrativa de uma mulher com fetiche em batimentos cardíacos, duas jovens que comem o corpo do cantor por quem são obcecadas e a vingança que um grupo de garotas prepara contra uma adolescente mais velha. Originalmente publicado em 2009, Os Perigos de Fumar na Cama já mostram o apreço da autora por imagens violentas, por mulheres que fogem do padrão seja pelos seus desejos ou pela forma como se relacionam com o mundo e por misturar o sobrenatural com a denúncia social. Todos temas que voltariam em As Coisas que Perdemos no Fogo publicado em 2016.



Em seu segundo livro de contos, Mariana Enriquez se debruça mais no encontro do horror real com o social e principalmente nas relações tensas entre homens e mulheres. Os contos são incômodos não apenas pela violência, mas por parecerem estranhamente próximos. Feminicídio, pobreza, violência policial, distúrbios alimentares e doenças psiquiátricas coexistem com fantasmas, casas assombradas e rituais de bruxaria.


Na história "O menino sujo", a narradora classe média decide morar no casarão histórico que era da sua família numa área da cidade praticamente abandonada, lá ela percebe uma família de moradores de rua em que a mãe era uma jovem grávida viciada em crack e um garoto que parece amedrontado. O destino dele perturba profundamente a protagonista e faz perceber que aquela não é mais a região que ela conhecia na infância e que existe toda uma série de relações que para ela são incompreensíveis.


Em "A Hospedaria", duas garotas decidem pregar uma peça num hotel que num passado foi um quartel militar e se deparam com a manifestação da violência da ditadura militar. "Os anos intoxicados" é uma história sobre o niilismo que marcou a geração que viveu na Argentina pós-ditadura em que o caos social impedia qualquer expectativa de futuro. Nesse conto o leitor acompanha um grupo de garotas vagando pela noite de Buenos Aires se drogando e vivendo experiencias cada vez mais fantasmagóricas.


Já em "A casa de Adela", uma narradora se lembra da aterradora experiência que viveu com seu irmão numa casa assombrada - casas aterradoras aparecem também em "O quintal do vizinho", onde uma assistente social lidando com a depressão suspeita que algo macabro acontece na casa vizinha a sua. Ambas lidam com o medo da violência urbana existindo tão perto de casa e incluem uma fresta para a existência do sobrenatural no meio do concreto das grandes cidades.


"Nada de carne sobre nós" narra a obsessão de uma mulher por uma caveira e que começa a emagrecer para tentar ficar parecida com ela. "Sob a água negra" é uma incursão da autora no universo do horror cósmico. Na história uma advogada decide investigar a fundo um caso de violência policial contra dois jovens negros e descobre algo indescritível. Numa escolha curiosa, Enriquez se apropria da obra de autor famoso por seus pensamentos racistas e usa ela para construir uma denuncia que vê na violência policial mais do que apenas um sintoma de violência urbana, mas algo tão cruel e sem sentido que só poderia ser parte de um ritual antigo.


Ao longo dos onze contos do livro, o leitor é confrontado com situações que são um misto de crônica policial com o fantasmagórico. O calor é marcante na maioria das histórias em que vemos as narradoras sendo levadas ao seu limite, e isso chega no seu ápice no décimo segundo conto que encerra o livro e que dá título a ele: As Coisas que Perdemos no Fogo.


Em meio a uma verdadeira epidemia de casos de feminicídio, as mulheres chegam ao seu limite e começam a popularizar uma prática extrema: grupos de mulheres se reúnem no meio do nada e num ritual colocam fogo em si mesmas. No ato extremo de violência existe uma ambiguidade, se os homens usam da violência para marcar o seu poder sobre as mulheres, elas usam do fogo como um ato de total controle sobre seus corpos. Os homens não irão decidir o que elas irão fazer consigo mesmas, apenas elas podem fazer isso. Em determinado ponto uma personagem se pergunta “Quando chegaria o mundo ideal de homens e monstras?”. Essa frase abarca bem a obra de Mariana Enriquez, em um mundo monstruoso às vezes só resta a suas protagonistas virarem monstras também.


 

OS PERIGOS DE FUMAR NA CAMA

2023 (Brasil) | 144 páginas

Autora: Mariana Enriquez

Tradução: Elisa Menezes

Editora: Intrínseca


AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO

2017 (Brasil) | 188 páginas

Autora: Mariana Enriquez

Tradução: José Geraldo Couto

Editora: Intrínseca

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