[Crítica] A Primeira Profecia: o anticristo é meu pastor, bons filmes não me faltarão
Atualizado: 20 de abr.
Sempre fico surpreso quando ouço e leio que as continuações de A Profecia (1976) não prestam; elas nem despiroqueiam tanto quanto costumam fazer as sequências de outras franquias do gênero, seguindo de maneira bem linear as aventuras de Damien, o anticristo do barulho. É bem verdade que nenhuma delas têm a elegância conferida ao original pela direção sempre segura de Richard Donner, que não sendo um realizador especialmente autoral, mas habilidoso na quase perdida arte de mostrar, revestiu aquele projeto com a carapuça de “filme de prestígio” — almejada pelo estúdio, que na época tentava seguir os passos de O Exorcista (1973), indicado a 8 Oscars e vencedor de 2. E deu certo; não descolaram as categorias principais, mas Jerry Goldsmith levou para casa a estatueta de Melhor Trilha Sonora. Sem contar a bilheteria; mais de 60 milhões de dólares em arrecadação apenas nos Estados Unidos. Obviamente, em seguida vieram A Profecia II (1978) e A Profecia III: O Conflito Final (1981), acompanhando a ascensão de Damien em diferentes etapas de sua vida (adolescência e maioridade) e repetindo estruturalmente o primeiro filme: pessoas vão morrendo em acidentes estranhos conforme descobrem o parentesco diabólico do rapaz.
O segundo capítulo se beneficia da tensão sexual irremovível de qualquer história focada em uma instituição só para garotos; aqui no caso, o colégio militar para onde o agora órfão anticristo é enviado junto com seu primo, com quem ele constrói uma dinâmica meio O Anjo Malvado (1993) — que eu diria ter se “inspirado” diretamente dessa fonte, pois além disso, há uma morte que é idêntica. Aliás, os grotescos falecimentos icônicos do longa de 1976 são trocados por eventos mais mundanos e um tanto mais divertidos, principalmente porque permitem aos personagens perceberem com bastante antecedência como vão morrer e, com isso, entrarem em histérico desespero. Tenho especial carinho pela longa sequência em que a jornalista vestida de Tarsila do Amaral é atacada por um corvo e, logo após, atropelada por um caminhão; mas aquela envolvendo dois vagões de trem de carga também é sagaz ao seu próprio modo. Desvela-se, portanto, o caráter de Filme B da franquia, antes mascarado pela condução classuda de Donner, abrindo portas para o que viria na terceira parte da saga do Capiroto Jr.. Neste, Damien está ciente de sua ascendência profana e do seu papel nas profecias sagradas, usando inclusive o velho e novo testamento como guias para suas próximas ações. Configura-se um cenário bem mais ambicioso, mas com bem menos orçamento, resultando num épico esvaziado que, involuntariamente, assume uma atmosfera absurdista meio hilária — é horroroso, mas de rachar o bico quando, no final, o dia é salvo literalmente por uma citação da bíblia que aparece escrita na tela, revelando um plot twist e, ao mesmo tempo, matando o algoz e protagonista da saga. Morte por escritura é, de fato, uma solução tanto preguiçosa quanto inovadora. Tem lá seus ares de fantasia de horror, com direito a livro de feitiços, seita de padres assassinos, holocausto de bebês e embate em ruínas medievais, e também tem Sam Neill (apavorante) cortejando um menino de 10 anos — algo que, percebi agora, é recorrente nos personagens do ator (Jurassic Park, Hunt for the Wilderpeople).
Pois bem, um telefilme e um remake depois, cá estamos às voltas com o lançamento de A Primeira Profecia (2024), retorno da franquia original aos cinemas em forma de prequela, — óbvio, porque a maior saga do cinema de horror é, talvez, aquela formada por todos os “inícios” que o gênero já produziu. As surpresas, porém, começam antes mesmo do título aparecer na tela ou da introdução da protagonista (um deleite à parte, mas já chego lá); por alguns instantes, parece que vamos mergulhar em mais um exercício de reverência nostálgica descerebrada e assistir ao repeteco gratuito de uma das cenas mais marcantes do longa de 1976. Ledo engano! Além de nos presentear com breves minutos de Charles Dance dando uma surra de composição que coloca no chinelo sua participação desperdiçada em Game of Thrones, este prólogo não apenas subverte satisfatoriamente umas 3 ou 4 vezes a expectativa do tipo de horror que estamos prestes a ver (seja por anteciparmos o desfecho da sua versão no original, seja pelas provocações visuais e sonoras), como também consegue plantar a semente do mistério em torno do qual vai girar a trama e ainda apresentar o tipo de fluidez narrativa que será regra nas duas horas seguintes. “Não posso mais fazer isso”, diz o Padre Harris (Dance), o rosto nas sombras; a cena desvanece para outra figura, o rosto coberto por um véu negro, que também implora: “Não posso mais fazer isso”.
Tal aprumo não é lapso algum, dando as caras já na sequência, quando somos apresentados à noviça Margaret (Nell Tiger Free), emergindo de um buraco no chão ao som de uma canção angelical e contrastando sua silhueta de vestes rígidas e pretas contra afrescos claros e coloridos de cunho cristão pintados acima de sua cabeça. Recém chegada à Roma no início dos anos 1970, a moça está prestes a fazer seus votos para consagrar-se freira sob o regime do convento e internato comandado pela Irmã Silva (Sônia Braga) e supervisionado pelo Cardeal Lawrence (Bill Nighy). O obstáculo acaba sendo a afeição que Margaret desenvolve por Carlita Scianna (Nicole Sorace), uma menina introspectiva que as freiras mantêm isolada das demais. Conforme a amizade entre as duas cresce, a noviça insufla também a suspeita de que há algo estranho acontecendo naquele lugar, principalmente após ser abordada pelo Padre Brennan (Patrick Troughton na versão de 1976, Ralph Ineson agora) e por suas teorias de que existe um complô com o objetivo de gerar e dar vida ao bebê que há de se tornar o anticristo.
Pela data, pela ambientação e pela temática, o roteiro dos praticamente novatos Keith Thomas e Tim Smith deixa claro, portanto, que vai desaguar diretamente nos eventos do filme original, que começa com o nascimento de Damien. Mas isso não é motivo suficiente para que a diretora Arkasha Stevenson se contente em apenas preparar terreno ou emular o que foi feito antes, e a maior surpresa de A Primeira Profecia é a recusa da cineasta em se render ao “prequelismo”, fugindo com notório afinco da armadilha de produzir um simples subproduto. Claro, há acenos pontuais ao longa de 1976, como a supracitada cena de abertura ou a morte de uma das freiras, um escancarado tributo; mas mesmo neles Stevenson se preocupa em outorgar personalidade própria ao seu projeto com planos e composições que servem a esta história e a estes personagens. Em muitos momentos, por exemplo, a cineasta brinca com a ideia de “níveis”; Margaret, como citei no parágrafo anterior, é introduzida saindo de um buraco, enquanto Carlita é vista pela primeira vez dividida em duas metades por sua cama, que ela escolhe atravessar pela parte debaixo e mais escura. Enquanto isso, note como Irmã Silva desaparece completamente ao lado da protagonista quando as duas se posicionam em frente à janela alta de uma sala de parto, como se apenas Margaret estivesse no patamar certo para conseguir ver o que realmente se passa ali dentro. Já mais na frente, um grupo de freiras declama seus votos sagrados deitadas no chão sob um raio de sol que sugere pureza, só para que a câmera desça e atravesse o piso revelando a noviça no subsolo fazendo descobertas repulsivas sob uma lâmpada vacilante. Essas trocas entre quem está no “céu” e quem está no “inferno” vão embaralhando a verdadeira natureza dos personagens, cujos caminhos contraditórios também são habilmente sugeridos com o uso recorrente de reflexos que os colocam no mesmo quadro, mesmo quando se tratam de figuras diametralmente opostas em personalidade ou posição (seja esta espacial ou moral).
E até quando não está contando nenhuma novidade, Arkasha é inteligente ao substituir diálogos por recursos narrativos que falam por si. Em destaque, o plano que parece dividido em duas telas, mas que na verdade apenas coloca a noviça Luz (Maria Caballero) de um lado do frame, sob uma iluminação pálida e dessaturada, enquanto espera para usar o vestido cerimonial disposto do outro lado do enquadramento, sob um raio de sol amarelo e quente; e também a rima de imagens formada primeiro pela freira recém consagrada de braços abertos contra o chão no meio de uma capela e coberta por um retângulo de luz ominoso, e depois por Margaret, em posição similar, agora excomungada e abraçada contra uma parede de um quarto sujo e coberta por um retângulo de luz fraca. Aliás, Stevenson aproveita e utiliza-se dos ritos católicos para salientar não só o caráter de culto de qualquer crença religiosa, e que em filmes assim costuma ficar restrito à ilustração de correntes divergentes do cristianismo ou de seitas satanistas, como também para para descortinar o viés castrador e subjugador que eles infringem àquelas mulheres.
Não será novidade para ninguém, tenho certeza, saber que a mitologia em torno da qual gira essa franquia foi criada, escrita, adaptada, editada, modificada e propagada ao longo dos séculos por homens — e que quase todo ela fala, claro, sobre homens. Pois A Primeira Profecia não se satisfaz em transmutar o corpo de personagens, até então majoritariamente masculino, para um foco quase que exclusivamente feminino. E se lá pelas tantas Stevenson aproxima sua câmera para avultar a claustrofobia do processo de ser vestida com um hábito pela primeira vez, noutro segmento a cineasta emprega o mesmo recurso para sublinhar a sensualidade com que duas noviças dividem as primeiras experiências que tiveram com deus, insinuando que estão falando, na verdade, de sexo. E zero surpresas, portanto, que ambas adiram à ideia de “aproveitar a vida” antes de serem enclausuradas dentro das vestes de freira. Tampouco que o filme associe com Margaret a figura da Medusa, seja através dos cabelos espalhados em forma de serpentes em volta de sua cabeça, seja pelo próprio rosto da Górgona, que surge como ornamento em um trinco que prende a protagonista, ou, finalmente, pelo simbolismo; na lenda, a personagem foi punida e transformada em monstro pela deusa Atena por ter transado com Poseidon. O deus dos mares, aliás, emprestou muitos de seus símbolos para ninguém menos do que Satanás, o Diabo, no processo de sincretismo com as religiões cristãs alguns séculos mais tarde — o tridente sendo o mais famoso deles. E enquanto Netuno, no folclore grego (a quem Agostinho viria se referir como, veja só, “demônio”), Poseidon também castigou as mulheres gregas depois de ser derrotado em uma votação para decidir o nome da capital do país (a história do tal do voto de Minerva), retirando delas o direito de votar e de passarem seu nome para os filhos — ambas tradições que seriam incorporadas pela Igreja Católica.
E como se a lapidação simbólica não fosse mérito suficiente, às vezes Arkasha Stevenson simplesmente decide que vai despejar na tela planos que variam do belo, como aquele que traz Margaret e Carlita em frente a um painel de estátuas brancas, ao medonho, como outro bastante longo que acompanha a aproximação de uma assombração com queimaduras graves pelo corpo — mais um: que tal aquele que coloca Margaret na bocarra de uma criatura formada pelas velas de um altar? Inteligentemente aliada com os montadores Amy E. Duddleston e Bob Murawski (montador habitual dos filmes de Sam Raimi, o que explica algumas transições instigantes vistas aqui), a diretora, por fim, também introduz elementos que ajudam na fluidez da narrativa; por exemplo, quando coloca luzes de trem cintilando através da janela do quarto do Padre Brennan, que mais tarde ressurgem com função dupla e operando tanto como chave da transição em um flashback quanto como efeito dramático. Ou (Arkasha não para!) quando dá especial destaque ao movimento que um personagem faz com a mão, só para depois resgatar esse mesmo gesto como forma de ilustrar o raciocínio de uma descoberta feita pela protagonista vivida por Nell Tiger Free.
A atriz, inclusive, pula com majestade das telas de TV, onde inquietava como Leane em Servant (2019 - 2023), para a pele de Margaret, igualmente tímida, mas não por isso, menos intrépida. Deixando clara a inadequação da noviça com um quase-escorregão que ela disfarça ao chegar no convento, Nell Tiger Free vai adicionando também doçura e curiosidade ao seu olhar, vendendo bem o carinho genuíno que sente por Carlita, até por ser, ela mesma, uma ex-garota-problema — outro lado de sua personalidade que vai aflorando conforme ela descobre mais sobre a maracutaia toda, desembocando em pequenas entregas hilárias pela impaciência que a moça demonstra com as rotinas das assombrações ("Quem disse isso!?") e em pelo menos duas referências à performance de Isabelle Adjani em Possessão (1981). Quem a antagoniza é uma austera Sônia Braga, usando as expressivas mãos que a idade fez cheias de calos para transmitir aquilo que notoriamente reprime em seu rosto, e que apenas sutilmente deixa escapar aqui e ali com as sobrancelhas, numa composição que é, ao mesmo tempo, insípida e gritante. E se Bill Nighy não consegue não ser apenas o Bill Nighy de batina (longe de ser uma reclamação), Ralph Ineson coloca pra jogo sua voz profunda, que parece vir do estômago, e confere seriedade aos avisos do Padre Brennan, antes apresentado como um paranoico desafortunado, agora, um trágico bastião da verdade lutando contra gigantes.
E ainda que eu tenha aprendido a gostar dos últimos três ou quatro minutos de filme, não me escapa que a única razão da sua existência é a comercial; filme de franquia precisa de pontas para possíveis continuações. Nesse caso, espero ver em breve “A Segunda Profecia”, ou seja lá qual for o próximo projeto que a talentosíssima Arkasha Stevenson colocar as mãos depois deste. Não é todo dia que vemos uma realizadora entregar coisas tão interessantes na TV como o piloto de Vingança Sabor Cereja (2021) e a terceira temporada de Channel Zero (2016 - 2018), e aí ser cooptada por um grande estúdio para cozinhar o que, além de ser um projeto cheio de personalidade, é também o melhor exemplar de terror do ano até agora. Amém!
THE FIRST OMEN 2024 | EUA | 117 min.
Direção: Arkasha Stevenson
Roteiro: Tim Smith, Arkasha Stevenson e Keith Thomas
Elenco: Nell Tiger Free, Ralph Ineson, Sônia Braga, Tawfeek Barhom, Maria Caballero, Charles Dance, Bill Nighy, Nicole Sorace
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