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  • Foto do escritorMatheus Marchetti

Através do Espelho: O Candyman de Nia DaCosta



Quando os logos dos estúdios aparecem invertidos no começo de A Lenda de Candyman, por um instante você pode achar que deu pane no projetor, mas é apenas o início dessa fascinante jornada através do espelho, mergulhando no mundo do infame personagem-título. Ecos de Philip Glass assombram a trilha sonora original de Robert Aiki Aubrey Lowe, enquanto os créditos navegam sobre uma fantasmagórica Chicago de ponta cabeça. Um mundo muito familiar para quem já assistiu o clássico de Bernard Rose, mas ao mesmo tempo tão diferente. Assistimos uma imagem invertida do filme de 1992, um reflexo - idêntico porém oposto. A Cabrini Green de 2019 é agora um bairro gentrificado, cujo “bicho-papão” local não é mais o Homem do Gancho, mas sim o espectro de Helen Lyle (Virginia Madsen) - a protagonista de O Mistério de Candyman, que em sua busca por desvendar a mais assustadora das lendas urbanas, acaba ela própria se tornando uma nova lenda urbana.

Quem conta um conto aumenta um ponto, e assim Helen vai de heroína à vilã conforme seu calvário vai passando de boca em boca, e num primeiro momento, até o próprio Candyman parece tomar uma nova identidade, não mais a daquele artista atormentado do século XIX, assassinado por amar uma mulher branca.



Tony Todd criou seu antagonista como um antiherói romântico no estilo do Fantasma da Ópera, e tal como o personagem de Gaston Leroux ganha uma nova história pregressa para cada uma de suas inúmeras adaptações, existe um novo Candyman para cada nova geração, e para cada novo autor que resolva se apropriar dessa figura para criar sua própria arte. Todd nomeou seu personagem como Granville T. Candyman, mas o nome ao qual é normalmente associado (e que acaba sendo reutilizado nesse reboot) é Daniel Robitaille, um elemento que na verdade foi surgir apenas na primeira continuação, Candyman 2: A Vingança, de Bill Condon.

Em The Forbidden, o conto que deu origem aos filmes, Clive Barker se apropriou de diferentes lendas urbanas para criar um Candyman branco atacando pessoas brancas em uma comunidade pobre de Liverpool. Bernard Rose se apropriou de Barker, assim como de outras lendas urbanas, para recontextualizar o personagem como um homem negro que assombra uma comunidade negra nos Estados Unidos, numa espetacular fábula moderna sobre classe e raça. Eis então que Nia DaCosta se reapropria de Rose para recontar essa história, não mais pela visão distante de um homem inglês branco, mas pela própria perspectiva de uma artista negra norte-americana, no ápice do movimento Black Lives Matter.



Atenção: spoilers sobre o filme no parágrafo a seguir.


Tal qual sua realizadora, Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) se apropria da lenda para criar uma série de novos trabalhos (suas pinturas, por sua vez, remetem inclusive à arte de Clive Barker). Mas a história que ele conta, que vai gradativamente possuindo e corroendo sua mente e seu corpo, é a história que ouviu do seu misterioso amigo, William Burke (Colman Domingo) - sobre Sherman Fields, uma vítima de violência policial nos anos 70, injustamente acusado e morto por um crime que nunca cometeu. E assim como Anthony faz de Fields a base da sua obra, é o próprio Anthony que está sendo usado como a obra maior esculpida por William. Este, por sua vez, é o “mestre das marionetes” contando sua própria reinterpretação do mito - afinal, é com seu teatro de sombras que damos início ao filme, o mesmo teatro de sombras que ilustra todas as histórias dentro da história, o mesmo teatro de sombras que enfim aparece em exposição nos créditos finais. Colman Domingo surge, portanto, como o verdadeiro análogo de Nia DaCosta dentro da narrativa - traçando paralelos entre a figura mitológica original e as violências do mundo ao redor, e usando o corpo escultural de Yahya Abdul-Mateen II para recriar e ressignificar o mais fascinante “vilão” dos anos 90, não mais como um monstro para a comunidade negra, mas sim um anjo - da guarda, e também da morte - contra a supremacia branca.


Fim dos spoilers.


Todo o marketing de A Lenda… parece usar e abusar da marca Jordan Peele para atrair público, o nome de Nia DaCosta ficando quase sempre apagado. E por mais que Peele tenha contribuído generosamente como co-roteirista e produtor, basta assistir ao filme para notar que ele carrega a linguagem visual muito própria e extremamente sofisticada da sua diretora, assim como também é muito distinto do tom operático de Bernard Rose. Se pudermos usar alguma comparação, sua abordagem remete tanto aos terrores de apartamento como Repulsa ao Sexo (1965) e O Inquilino (1976) em sua ênfase nas aflições da convivência urbana, quanto também aos gialli dos anos 60 e 70. Seu retrato do mundo cosmopolita da arte contemporânea, habitado pelas mais belas e elegantes personalidades, e a forma como essa paisagem se torna um canvas onde ela pinta as mais estilizadas cenas de violência, se aproxima de títulos como O Pássaro das Plumas de Cristal (1970) de Dario Argento. A presença do sobrenatural nesse contexto traz em mente as obras de Emilio Miraglia, principalmente A Rainha Vermelha Mata Sete Vezes (1972), onde um fantasma ancião parece responsável por uma série de assassinatos no mundo da moda.



O cinema mainstream de hoje, seja de horror ou não, parece quase sempre voltar aos filmes de ontem como inspiração, mas DaCosta não se deixa cair na nostalgia nociva que atrapalha muitos dos seus contemporâneos. Ela abraça Barker e Rose sem medo, mas deixa bem claro que nesse caso, ela é a autora. A ausência de Tony Todd (sua presença hipnótica reduzida apenas à uma ponta… mas que ponta!) e daquela apoteótica trilha do mestre Philip Glass (talvez a mais bela composição já feita para um filme de gênero) fazem falta, mas também nos obrigam a nos desvincular dessas memórias afetivas, e abraçar as novas complexidades e prazeres muito específicos desse reboot - assim como o Suspiria de Luca Guadaganino ignora tudo o que foi mais icônico de Argento para criar algo igualmente fascinante. DaCosta é inclusive bem mais caridosa que Guadagnino, inserindo momentos pontuais de fanservice (a presença de Vanessa Williams, Tony Todd, a voz de Virginia Madsen) que com certeza vão deixar muitos admiradores do original pulando em suas cadeiras, mas sem alienar um público novo. E se Suspiria peca na duração de quase 3 horas, a maior falha aqui é encaixar todas as suas ideias elaboradas em míseros 90 minutos, resultando num terceiro ato um pouco apressado e abrupto (os trailers indicam que muito material filmado deve ter sido removido do corte final), mas suas aspirações permanecem tão instigantes que sobressaem as imperfeições, e afinal, terminar um filme com um gostinho de “quero mais” não é exatamente um problema (que venha o Candyman 5!).

Num momento em que remakes foram substituídos por continuações disfarçadas com um grande foco no apelo nostálgico, repletos de easter eggs mas sem nenhuma alma, é revigorante encontrar uma diretora que de fato usa esse formato para criar uma voz própria. Um reboot que encara e discute o fato de ser um reboot, de ser a repetição de uma história contada de novo e de novo, e que busca entender o “por quê” que precisamos revisitar esses mesmos personagens e cenários tantas e tantas vezes. É sobre o poder de ouvir e contar histórias - seja na tradição oral, ou no mais primitivo teatro de sombras, seja na tela de um pintor ou na tela de um cinema - a importância do “quem conta um conto aumenta um ponto”. É sobre o poder de fazer arte em todas as suas mil possibilidades, de usar a arte para ressignificar a nossa realidade e exorcizar nossos demônios - pessoais e sociais (tal como William Burke, Anthony McCoy, e o próprio Clive Barker). A arte como uma forma de olhar para o passado para entender o hoje, e talvez mudar o que está por vir. É exatamente isso que Nia DaCosta faz - se apropria dos horrores do passado (tanto os de dentro da tela, como os de fora) - para confrontar os horrores do presente, e nos guiar ao futuro.



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