[Crítica] Fale Comigo: terror da A24 sobre a grotesca desventura da adolescência
Atualizado: 21 de jun. de 2023
No século XIX, uma febre se alastrou pelas classes abastadas europeias: as séances, ou sessões de mesa branca. Num período marcado pelo contraste intenso entre antigas tradições e espiritualidade com a ciência e as tecnologias que se desenvolviam, as reuniões privadas em que era vendida a possibilidade de contatar o além ganhou uma popularidade absurda. Entre as figuras atraídas pelo mistério da conversão com o além estão escritores famosos como Victor Hugo, Arthur Conan Doyle e a escritora lésbica Radcliffe Hall que segundo relatos passou anos tentando se comunicar com a sua falecida companheira, além do ódio de figuras como o ilusionista Houdini que passou anos da sua vida expondo médiuns fraudulentos e farsas envolvendo supostos eventos e poderes paranormais.
Essa obsessão obviamente não ficou contida na Era Vitoriana e nem na Europa, e obviamente que a literatura e o cinema fantástico também não passaram em branco por isso. Sessões espíritas aparecem com frequência no eurohorror e ganharam uma força ainda maior com o crescente interesse no ocultismo que aconteceu nos anos 60 e 70 - Farsa Diabólica (1964), Um Lugar Tranquilo no Campo (1968), Vozes do Além (1974) e Demônio com Cara de Anjo (1977) são alguns exemplos que vem a cabeça. Já nos Estados Unidos, a imagem mais associada com a reunião é a do tabuleiro de Ouija, uma parte central do clássico O Exorcista (1973) e figurinha carimbada de filmes de terror adolescente (curiosidade: sabia que Ouija é marca registrada pela Hasbro? Sim, aquela que faz brinquedos). Algo curioso de se observar é que ao passar dos anos o ritual de conversa com os mortos foi deixando de ser algo feito por nobres e burgueses europeus em suas mansões em noites nubladas e passando a ser algo de adolescentes em festas do pijama. A junção de adolescentes e tábuas de ouija já virou um clichê em grande parte pelo seu reflexo da realidade, quem afinal não tem ou conhece uma história de amigos brincando de jogo do copo? É se apropriando do apelo que esse jogo/cerimônia tem com adolescentes e o interesse deles pelo oculto e por novas experiências que se constrói Talk To Me - ou Fale Comigo.
O filme australiano é o primeiro da dupla de irmãos gêmeos Michael e Danny Philippou e teve sua estreia no Festival de Sundance de 2023 onde já causou burburinho (e onde a equipe do Esqueletos assistiu). Feito por diretores estreantes e com um elenco na sua maioria formada por atores desconhecidos (com exceção da veterana Miranda Otto que os nerds e os gays devem reconhecer de Senhor dos Anéis e os gen z e outros gays por O Mundo Sombrio de Sabrina), Fale Comigo conquistou atenção suficiente para ter os seus direitos de distribuição nos Estados Unidos comprados pela super hypada A24 e catapultar o pequeno lançamento para lista de lançamentos aguardados do ano.
Fale Comigo tem como ponto de partida um conceito curioso. Entre os jovens começa a circular uma nova diversão: um ritual de conversa com os mortos e subsequente possessão que se torna popular principalmente pelo “barato” que a experiência causa no possuído. A “brincadeira” é considerada segura desde que se sigam as regras básicas, sendo a principal que o espírito não pode passar mais de alguns segundos no corpo do hospedeiro. O artefato que possibilita esse ritual é uma mão de cerâmica (que supostamente possui uma verdadeira mão mumificada em seu interior) que chega até os protagonistas seguindo a melhor tradição das boas lendas urbanas: através de um amigo de um amigo.
A protagonista do filme é uma jovem que perdeu a mãe de forma trágica, se distanciou do pai e se aproximou ainda mais da sua melhor amiga e da família desta (formada por um irmão mais novo e pela mãe). Em meio aos típicos dramas da juventude envolvendo bullying, rapazes tentando mostrar a masculinidade, bem-me-quer / mal-me-quer, o grupo de amigos acaba cruzando o caminho do artefato misterioso e todo o êxtase que a experiência sobrenatural causa. Por ser um filme de terror, já é de se esperar que em algum ponto as regras serão desrespeitadas e o resultado disso é grotesco.
O grotesco, com corpos se contorcendo e olhos quase saltando das órbitas, é sem dúvidas um chamariz, mas a sua força é amplificada pela forma exemplar como os irmãos Philippou casam isso com o aspecto coming of age do filme. Em alguns momentos com ares de irreverência e em outros ressaltando a imensa solidão e desespero dos personagens, Fale Comigo consegue ser surpreendentemente cruel com os seus protagonistas, mas nunca deixa de ter um olhar compreensivo para os dilemas dos adolescentes, com o quanto eles podem ser carinhosos e com o quanto podem ser autodestrutivos. O sentimento de solidão que só parece ser suprido pela presença da família de amigos que criamos, paixões não superadas e sentimentos de uma intensidade que não teremos em outra fase da nossa vida, tudo isso é mostrado sem cinismo pelos diretores que mostram um interesse genuíno pelos altos e baixos dessa fase e veem como ela por si só já tem algo de trágico e fantasmagórico.
Uma fase da vida marcada pela descoberta de novas experiências e por um sentimento de que somos indestrutíveis é o cenário perfeito para uma história como essa. A morte e o sobrenatural são vistos inicialmente tanto com fascínio quanto com desdém, os personagens constantemente riem dos espíritos com quem estão conversando e numa cena particularmente inacreditável um personagem possuído começa a dar um beijo de língua no cachorro da casa (sim, isso mesmo que você leu) e a reação dos amigos é rir e gravar um vídeo disso. O contraste dessa irreverência que adolescentes lidam com o mundo à sua volta com a seriedade do que estão lidando resulta em acontecimentos desastrosos e a dolorosa descoberta dessa fase da vida de que as ações tem consequências. O que não impede os diretores de terem uma certa admiração pela inocência dessa época.
Os irmãos Philippou iniciaram suas carreiras em um canal conjunto do YouTube chamado RackaRacka onde filmavam esquetes de ação/terror com doses de humor e esse período de experimentação claramente matura numa direção confiante, precisa e tática, sabendo controlar o caos com agilidade e estilo. Entre seus momentos mais grotescos e mais tenros, a dupla consegue encontrar o fio entre a violência sádica de The Evil Dead (cuja influência não passa despercebida) e as conexões humanas como conforto para o terror existencial de It Follows.
É relativamente fácil enxergar Fale Comigo como sendo apenas uma história de aprendizado sobre consequências ou então vê-lo como uma metáfora para uso de substâncias na adolescência (a protagonista quase que literalmente fica viciada em fazer essas sessões de conversa espiritual). Como o próprio título indica, é sobre a constante busca por conexão que existe nesse momento tão intenso, ver o filme apenas como uma versão sobrenatural de Christiane F. ou como uma propaganda do PROERD é uma visão muito rasa que apaga toda a forma inventiva com a qual ele se apropria das histórias de adolescentes amaldiçoados e mescla a ternura com a crueldade, duas marcas registradas dessa fase da vida.
Acompanhe a cobertura oficial do Esqueletos no Armário no Festival de Sundance 2023.
TALK TO ME
2023 | Austrália | 94 min.
Direção: Danny Philippou & Michael Philippou
Roteiro: Bill Hinzman, Danny Philippou
Elenco: Sophie Wilde, Alexandra Jensen, Joe Bird, Otis Dhanji, Miranda Otto, Zoe Terakes
Acho que a principal metáfora é sobre "dar fim"/sacrificar sentimentos, a personagem que não "deu fim" ao luto que tinha e ao sentimento que tem pelo namorado da amiga, a mãe que não "da um fim" na ideia de que a filha já é uma adolescente, entre várias outras coisas, isso é resumindo bem na cena inicial na qual ela não acaba com o sofrimento do canguru no meio da estrada, apenas deixa ele sofrendo no canto.