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  • Foto do escritorJoão Neto

[Crítica] Eileen: um conto sobre rancor queer e fascinação

Atualizado: 17 de out. de 2023



Acompanhe a cobertura oficial do Esqueletos no Armário no Festival de Sundance 2023.

Em certo momento lá pelas tantas de Eileen, Anne Hathaway pergunta à personagem-título, brilhantemente interpretada por Thomasin Mackenzie, se ela se considera normal. Eileen responde, "quão normal?". A verdade é que entre olhares, taças de vinho e cigarros, as duas sabem que não, Eileen não é "normal". Mas tanto a pergunta quanto a resposta saem de suas bocas com intenções diferentes.


Prometendo ser o filme que deixará as sáficas (e gays obcecados por figuras maternas e mulheres desequilibradas) insanamente ensandecidas quando lançado oficialmente, Eileen é a história de uma jovem mulher nos anos 60. Completamente amarga com a própria vida limitada, ela se vê obrigada a cuidar de seu pai alcóolatra, um ex-veterano de guerra abusivo que a menospreza, enquanto trabalha como secretária numa penitenciária masculina para jovens delinquentes - uma posição que deveria ser apenas temporária mas já se passaram quatro anos.


Em sua rotina frustrada, Eileen sonha acordada com encontros sexuais explosivos e maneiras de acabar com sua angústia - como dar um tiro na própria cabeça, ou no papai. Mas as coisas mudam com a chegada de Rebecca (Anne Hathaway), uma elegante psiquiatra usuária de casacos de pele e nova adição à equipe da penitenciária. Com uma peruca loira armadíssima e um tom de voz idêntico ao da Cate Blanchett, Rebecca se torna esse objeto de fascínio e afeição para a garota, despertando um novo senso de identidade nela, como também de desejo.


Muito do humor perverso de Eileen vêm da obra original, o livro homônimo de Ottessa Moshfegh, mas na adaptação ganha ainda mais vida devido à fantástica Thomasin McKenzie - já queimando largada e se firmando como uma das minhas performances favoritas do ano. Complexa e de uma natureza curiosa, sua protagonista é dinâmica sendo dosada, entre todas as suas neuroses e inseguranças. É uma personagem absurdamente humana justamente por esconder muito rancor dentro de si, um rancor de não ser vista, de não ser compreendida, de não ser desejada, um rancor de si própria.


É por isso que o surgimento de Rebecca na sua vida é tão avassalador. Pela primeira vez, ela se sente, de fato, percebida. A relação das duas é construída de maneira sedutora como uma canção de jazz, sem muitas preocupações com fatores externos ou subtramas de aceitação/sair do armário. Logo, Eileen começa a se espelhar em Rebecca (tem coisa mais queer que isso?), usando a personalidade confiante e estabelecida da psiquiatra, um escudo para enfrentar um ambiente e uma sociedade majoritariamente patriarcal, como um espelho para irromper de suas prisões pessoais. O diretor William Oldroyd conduz essas dinâmicas com precisão, deslumbramento e uma dose certa de cinismo, algo que já podia ser observado em seu trabalho anterior, o ótimo Lady Macbeth (2016) com Florence Pugh.


Se as familiaridades entre as personagens e o cenário (também situado no inverno do Natal) definitivamente tecerão comparações à Carol (2015), Eileen se aproveita dessas expectativas para fazer você acreditar que está assistindo ele, mas não mede esforços para retorcê-las depois e se lançar numa espiral noir de repressão, desejo e perversão. O que ele não explicita, ele deixa nas entrelinhas e se o diabo está nos detalhes, Eileen é um dos retratos mais deliciosamente diabólicos, interessantes e corrosivamente divertidos sobre a existência queer feminina dos últimos anos - e uma das surpresas mais gratas do festival até agora.


Ps: Após Noite Passada em Soho e Eileen, qual filme fechará a trilogia de Thomasin McKenzie obcecada por loiras?

 

EILEEN

2023 | EUA | 96 min.

Direção: William Oldroyd

Roteiro: Otessa Moshfegh, Luke Goebel

Elenco: Thomasin McKenzie, Anne Hathaway, Shea Whigham, Marin Ireland, Owen Teague


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