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  • Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

[Crítica] Guerra Civil: sem bacuralismos na terra da liberdade


Recentemente, o cineasta Christopher Nolan fez o dia de seus detratores ao soltar em uma entrevista que não faz filmes sobre seus ideais políticos. Na fala, discordo apenas quando ele diz que o autor precisa ter uma abordagem neutra e objetiva, pois é sabido que toda estética, estilo, enfoque, linguagem, temas e demais componentes que fundamentam uma obra são sempre políticos — Nolan pode não perceber, mas a própria decisão de não falar de seus ideais é, em si, um recorte enviesado. Mas concordo com o realizador quando ele explica: “Você não pode usar a narrativa para dizer às pessoas o que pensar. Isso nunca funciona. As pessoas simplesmente reagem contra isso. (...) Você só pode convidá-las a sentir algo”. Um convite, ao invés de uma imposição, é exatamente como se apresenta Guerra Civil (2024), novo filme do diretor britânico Alex Garland, que foge daquilo que estou cada vez mais afeiçoado a chamar de “bacuralismos”; ou seja, a exigência de que uma obra seja claramente posicionada no espectro político, que traga catarses desenhadas especificamente para o seu público-alvo e que, se possível, ainda discurse e panflete em prol da causa — caso contrário, ela é “problemática”, “perigosa”, “isentona” e outros adjetivos esvaziados no debate online.


Mas longe de mim condenar o filme que obviamente originou meu termo, Bacurau (2019), até porque não acho que o longa de Kleber Mendonça Filho siga esses caminhos, ainda que tenha funcionado como expiação coletiva para boa parcela da Esquerda num momento de pessimismo após sucessivas e amargas derrotas. Algo que, duvido, será o caso de Guerra Civil, mesmo que estejam bem delineados quem são os “caras maus” no seu cenário hipotético em que o separatismo tomou conta dos Estados Unidos, resultado da decisão do presidente do país de permanecer no cargo por um terceiro mandato — o que é altamente inconstitucional —, e também dos seus decretos, que dissolveram o FBI e outras instituições que poderiam investigá-lo ou destituí-lo do poder. Com estados formando alianças contra e em favor do governo golpista, a Casa Branca ordena ataques aéreos contra seus próprios cidadãos, deflagrando o conflito que dá título ao projeto. E nada disso, aliás, está explicado em uma cartela no início ou é exposto de maneira didática; o filme de Garland divide com Bacurau a mesma generosidade de permitir ao espectador investigar seus contextos e ideologia através de fragmentos do universo e das atitudes e posturas dos personagens frente aos eventos que se desenrolam ali, sejam eles grandiloquentes como uma batalha na capital dos EUA, ou casuais como um sorriso em uma loja de vestidos.



E sim, ideologia, pois é evidente que o projeto não escapa de um viés político — e nem acredito que ele tente, até pela escolha por protagonistas que são vivas representações do olhar e do recorte narrativo; um quarteto formado pela experiente fotojornalista de guerra Lee (Kirsten Dunst), o repórter de zona de conflitos Joel (Wagner Moura), o jornalista veterano Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a novata aspirante ao fotojornalismo Jessie (Cailee Spaeny). Enquanto as chamadas Forças Ocidentais colecionam vitórias contra as facções golpistas, os quatro partem de Nova York em direção à cidade de Washington às vésperas do que parece ser o fim do conflito, na esperança de registrar ou até mesmo de conseguir um depoimento do presidente (Nick Offerman) antes de sua deposição — ou execução sumária, o que é mais provável. No caminho, numa espécie de re-releitura de Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad (visto que Apocalypse Now, 1979, farta inspiração aqui, já é uma modernização do livro), o grupo improvável se entrosa conforme avança na estrada e atravessa pequenas amostras da realidade funesta que tomou conta do país em guerra consigo mesmo; rodovias abandonadas, zonas dominadas por milícias, pontos de contato entre tropas inimigas, cidades inteiras que preferem ignorar o que está acontecendo e, claro, enfim o coração pulsante e barulhento da contenda.


Inclusive, o desenho de som é instrumental para o tom adotado, opressivo, com explosões e disparos que assustam, chegando altos demais para configurar espetáculo, embora este seja inevitável. É a velha contradição; mesmo uma atmosfera agourenta torna-se entretenimento na sala de cinema, já que não oferece risco real ao espectador no conforto de sua poltrona. Importante então justificar o verniz, firmar posicionamento, e o de Garland está claro: seu filme é anti-guerra. O roteiro sublinha até excessivamente essa questão em sua cena mais pedagógica (a única que não gosto), quando dois franco-atiradores resumem a dinâmica dizendo “Lados? Eles querem nos matar, e nós queremos matá-los”, ponto. Ou seja, na guerra só há assassinos, sejam acidentais ou profissionais, ainda que exista nitidamente um lado certo. Para Garland, os apoiadores do presidente são nacionalistas hostis à imprensa, com expoentes abertamente racistas e xenofóbicos que usam a guerra não como causa, mas como pretexto para o extermínio. Enquanto do outro lado, há um esforço de guerra que chega a unir estados ideologicamente tão divergentes quanto o Texas e a Califórnia em torno do objetivo de eliminar um inimigo fascista em comum. Se nas trincheiras golpistas encontramos apenas soldados brancos, alguns claramente codificados como rednecks, na linha de frente das Forças Ocidentais há uma diversidade destacada até pelas cores que usam para demarcar seus avanços, azul, verde e rosa — que em certo momento, aparecem nas unhas pintadas de um dos soldados, indicando também de forma sutil e divertida o progressismo daquelas tropas.



E embora jornalistas por profissão, os quatro personagens centrais também passam longe da objetividade ou isenção; em conversa dentro do carro, Joel e Sammy formulam perguntas para fazer ao déspota na Casa Branca se chegarem a encontrá-lo com vida, e não conseguem evitar o desdém e o deboche em relação ao homem, a quem chegam a comparar com Mussolini. Não que Guerra Civil seja um filme cínico quanto ao papel do jornalismo. Ele é sobre a guerra, mas não quanto a isso. Produzindo uma conjuntura na qual a internet e as redes sociais caíram, e a TV e o rádio viraram veículos de disseminação da propaganda golpista, Garland suscita o questionamento: registra-se para quem? Publica-se onde? E aí entra sua ode, porque para seus quatro protagonistas, a resposta é óbvia: não importa. Acima de tudo, registra-se. Se não podem ajudar, se não podem socorrer, se não podem salvar vidas, se não podem impedir a exceção sumária de um lado, ou o massacre perpetrado pelo outro, então cabe a eles a função de fazer o registro, sempre fundamental, seja este difundido para uma pessoa ou um bilhão.



E no caminho para o registro mais importante dessa viagem, Alex Garland evita o tom episódico ao estruturar sua narrativa na relação entre Lee e Jessie. As duas partem de extremos opostos, uma é mais nova e não se importa em usar a câmera analógica, ainda que isso tome tempo de preparação e revelação, já a outra é mais velha e prefere poupar tempo com a praticidade de um aparelho digital. Num plano da janela do carro, Lee observa as ruas com olhos inquietos, que parecem convulsionar tamanha a rapidez com que Kirsten Dunst move sua íris dentro das órbitas. Ao mesmo tempo, é um olhar morto, inexpressivo, cansado. Ela já viu horrores demais, está dessensibilizada. Nos seus pesadelos, a fotojornalista relembra as situações brutais que presenciou com um filtro prismado que cobre os entornos, mas não seu próprio corpo, como se simbolizasse o distanciamento autoimposto entre ela e aquilo que registra — e sempre que um novo trauma em potencial avizinha-se ou se apresenta no caminho, Garland resgata esse filtro na perspectiva de Lee, insinuando sua antecipação para bloquear o que vem por aí, ou o que acabou de passar. Exercício fadado ao fracasso, claro. Essas vivências fazem parte de quem Lee é, queira ela ou não, como também fica ilustrado quando uma de suas memórias vence esse filtro e surge nítida; um homem sendo incinerado vivo, em câmera lenta. Já Jessie ganha de Cailee Spaeny o fascínio e a energia de alguém que espera grandes coisas do futuro, e ainda não sabe o que a estrada à frente lhe reserva — tanto literal quanto figuradamente.


[Leves insinuações de spoilers a partir daqui, bom avisar]


A princípio, Lee rejeita a presença da admiradora mais jovem, convencida (e tentando convencer outros) de que ela vai surtar ou morrer (provavelmente os dois). A cada nova parada, porém, Dunst baixa a guarda de sua personagem e permite até certa doçura e orgulho na maneira como passa a olhar para a colega, enquanto Spaeny torna-se mais ousada e assertiva em sua postura como fotógrafa e como parte do bando — e cabe ressaltar que Guerra Civil foi filmado em ordem cronológica, o que deve ter ajudado também. Enfim, após uma das cenas mais amaldiçoadas que lembro de ter visto nos últimos anos, engolida pela ponta fenomenal de Jesse Plemons, Lee, Joel e Jessie dividem um olhar em lados opostos do carro que, antes, desempenhou papel tão importante na aproximação entre eles. Lee os enxerga cobertos pelo seu filtro colorido; não que rmais estar conectada a eles, e Jessia observa seu olhar morto, como se finalmente apreende-se a técnica de dessenssibilização da outra. Mal sabe ela que Lee, escondida dos demais e em contradição ao que havia prometido à garota no início do filme, decide deletar a foto de um amigo morto que registrou em sua câmera. É asim, sem diálogos, que Garland nos conta que os arcos das duas se encontraram em algum ponto no meio, e agora se inverteram, seguindo suas trajetórias novamente em direções opostas. Para bom entendedor, os destinos das personagens está dado aí mesmo nesta cena. Aliás, é a elegância com que Alex Garland antecipa o desfecho, que impede o mesmo de soar maniqueísta. Pelo contrário, é uma pontuação necessária num jogo de Tetris em que as primeiras palavras delimitam visivelmente o encaixe com as que virão por último.



Paralelo a esse X formado pelos caminhos das duas fotógrafas, Wagner Moura e Stephen McKinley Henderson oferecem uma dinâmica própria e, por consequência, outras nuances que complementam o entrosamento do quarteto. Joel é um viciado em adrenalina que não esconde o sorriso faceiro quando pode chegar perto da linha de frente da batalha, e Wagner Moura, além de gostoso e putão, investe nos modos efusivos do repórter. Já Sammy é uma voz bem mais temerária, demonstrando um ímpeto jornalístico recrudescido pelos anos; para ele, é mais importante sobreviver do que ver. Um tipo que Henderson domina com facilidade, sem deixar que o homem idoso soe como um velho resmungão. Ele é um profissional que não assume riscos desnecessários, com instintos afiados pelas décadas de carreira — e outra das sínteses do projeto está na boca do seu personagem, quando Sammy, homem negro, é questionado sobre querer ir para Charlottesville, e responde “Preciso mesmo explicar porque quero ir para lá?”. Ora, é óbvio que Garland está aludindo à marcha de racistas e supremacistas brancos que tomou conta das ruas da cidadezinha na Virgínia em agosto de 2017, seguindo a ascensão de Donald Trump ao poder, mas tal qual seu personagem, ele não precisa explicar que está falando disso.


Assim como, sem nenhuma troca expositiva, o realizador também permite aos seus personagens um momento de sensibilidade após passarem por eventos traumáticos; os quatro jornalistas, designados com a tarefa enxergar o que há de pior na humanidade, se dão ao luxo de admirar a beleza em uma chuva de faíscas no meio da noite. Cena que é sucedida por um amanhecer encantador, cuja tranquilidade é rasgada por tanques e helicópteros atravessando a paisagem. É a direção nos puxando de volta à crueza da realidade. O respiro acabou. Com trama, temas, contexto e personagens já bem amarrados, é nesse trecho final que Garland concede protagonismo à ação, conseguindo rapidamente estabelecer não apenas a brutalidade do confronto entre tropas altamente (e tecnologicamente) armadas e preparadas, como as dificuldades de uma guerra em um ambiente urbano moderno — sempre evitando avançar com sua câmera para além do fronte, respeitando a perspectiva dos jornalistas. O que, por fim, torna a sequência derradeira absolutamente angustiante (e fissurante), pois o cineasta nos mantém constantemente um passo atrás do destacamento que adentra cômodo após cômodo da Casa Branca, quase forçando o espectador a esticar o pescoço para descobrir o que vai encontrar depois da próxima porta. É atrás de uma delas que  [SPOILER] Jessie, enfim, completa sua transição, e logo após fotografar um amigo morrendo, a jovem assume o centro do quadro para ser a última coisa que veremos em tela antes dos créditos — o filtro prismado, antes exclusivo de Lee, agora surgindo em volta dela.



Confiando, portanto, na capacidade do espectador de absorver esse tipo de detalhe de linguagem, o filme recusa até seu derradeiro segundo as respostas prontas — ou pior, respostas que parte do público já tem. Com uma carreira admirável que, além dos excelentes roteiros de A Praia (2000), Extermínio (2002), Sunshine: Alerta Solar (2007) e Dredd (2012), coleciona ainda acertos na direção como o inquietante Ex Machina (2014), o absurdo Aniquilação (2018) e o subestimado Men (2022), Alex Garland entrega Guerra Civil com a promessa de não voltar a dirigir outro projeto tão cedo. E seguindo o exemplo de sua generosidade enquanto contador de histórias, retribuo a ele não uma imposição, mas um convite de admirador para que, no futuro, se for de sua vontade, volte a conduzir outra obra tão coesa, tematicamente rica e energizante quanto esta. 


 

CIVIL WAR 2024 | 109 min.

EUA e Reino Unido

Direção: Alex Garland

Roteiro: Alex Garland

Elenco: Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen McKinley Henderson, Nick Offerman, Jesse Plemons




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