top of page
  • Foto do escritorThiago Gelli

[Crítica] Observadores é caos psicossexual para iniciantes



O voyeurismo, por mais que tenha sua representação no cinema constantemente creditada ao seminal Janela Indiscreta, de Hitchcock, não poderia tardar a ser celebrado em narrativa audiovisual. Imbuído na vida cotidiana — seja por curiosidade mórbida, acidente ou fetiche —, ele é uma atividade intuitiva, tantalizadora, de fácil relevamento, e, especialmente, intrínseca à criação do cinema, que desbrava intimidades objetivas e subjetivas de terceiros com muito mais precisão que uma mera bisbilhotagem.


Sob tal argumento, Observadores (The Voyeurs, 2021) dispensa a sutileza textual para acompanhar seus protagonistas, um casal jovem e boêmio que se muda para um espaçoso loft em frente a outro apartamento, no qual um fotógrafo (quase sempre seminu) e sua esposa (ex-modelo) vivem uma vida melodramática de alto teor erótico. A oftalmologista Pippa (Sidney Sweeney) e o músico Thomas (Justice Smith) são fisgados. Ela, por ansiar por experimentação após anos de esforço à universidade de medicina que a privou de prazeres da carne; ele, por apoio à parceira e entusiasmo, tendo já um passado devasso não especificado a fundo.


O que se sucede é uma série de demonstrações de espionagem tecnológica, reviravoltas, corpos nus e morte — tudo parte do curso esperado para um filme como esse. Se Observadores não impressiona por ineditismo, seu apelo magnético vem de refrescância. Mesmo que lentes de aumento e amplas janelas estejam envolvidas, o longa evoca melhor comparsas mais recentes que o clássico hitchcockiano, mas tematicamente mais distantes da narratividade mainstream atual — nomeadamente Todas as Cores do Medo (1972), de Sergio Martino, Dublê de Corpo (1984) e Paixão (2012), ambos de Brian De Palma (a estreia na véspera do aniversário do mestre em sensualidade, aliás, é perfeitamente adequada).


Os frutos de comparação são todos exemplares que dificilmente seriam produzidos na contemporaneidade no mesmo nível que outrora, especialmente pelo apelo sexual explícito que aproveitam. A recepção mista de Paixão e a chegada discreta de Observadores ao streaming são bons denominadores para isso. Todavia, o filme, se não atinge a excelência visual de seus antecessores, filmado majoritariamente de maneira pouco inventiva (repetidamente pelas lentes de um binóculo), honra suas energias sórdidas e se delicia em anacronismos.



O casal central parte de um imaginário dominante já largamente defasado. Em 2021, é difícil imaginar parceiros que, ainda na primeira metade de seus 20 anos e em posições de entrada nos seus campos de trabalho, conseguem alugar um apartamento vizinho àquele de um prolífico e rico fotógrafo sem a ajuda de herança. Eles discutem a possibilidade de filhos e riem da ideia de poligamia em almoços com amigos. Para todos efeitos e sentidos, Pippa e Thomas são um casal conformista que chega o mais perto possível de uma interpretação do sonho americano heteronormativo adequada à geração Z.


Quando ambos começam a se investir na vida alheia, o interesse parte do rapaz, que nota Seb (Ben Hardy) e Julia (Natasha Liu Bordizzo) aos amassos em frente às janelas que expõem todo o apartamento. Pippa, de propensão puritana e insatisfeita com a vida sexual monótona que leva, inicialmente afasta a possibilidade de observá-los, mas logo encontra nela libertação — e assim acessa sensibilidades individuais que perturbam sua existência conjunta.


Ao passo que sua obsessão cresce, Thomas é gradualmente deixado de escanteio, e a perversão toma conta como uma rachadura em perfeita porcelana que abre espaço para o desejo, intriga e sadismo. Observadores brilha justamente como falha num fluxo cinematográfico ostensivamente conservador. Dessa vez, todos são belos e todos estão excitados — com exceção ao personagem de Justice Smith, que conecta o filme ao romantismo que o mesmo procura subverter.



A câmera do diretor Michael Mohan não hesita em explorar de maneira cada vez mais detalhista o corpo escultural de Ben Hardy, assim como as reações que provoca na fisicalidade demonstrada por Sidney Sweeney. É ela, no entanto, como carro-chefe do longa, que por vezes o leva na direção de dramas mais tradicionais extraídos de premissa semelhante. Seu semblante inocente, de início apropriado para a personagem, tropeça ao tentar evoluir ao lado da insanidade da narrativa, que exige rápidas transições de tom para sustentar sua sede por reviravoltas. A entrega da atriz é vacilante e encontra um equilíbrio quando o encerramento já está próximo.


Antes disso, no entanto, ela mantém inegável aptidão para dominar a própria sensualidade. Como De Palma outrora utilizou Melanie Griffith na roupagem de Holly Body, Sydney e seu corpo guiam a narrativa mesmo quando o domínio não é aparente. É seu desejo que catalisa efeitos positivos e negativos do arriscado envolvimento com os estranhos, e sua relação com o próprio prazer que comunica a vulnerabilidade da personagem. O calculado ritmo de nudez, que avança ao longo da espiral e varia entre o quarteto central, serve como ilustração.



O ponto que conecta tantas facetas é a edição dinâmica e brusca, que traça conexões líricas sem se preocupar ostensivamente com continuidade e furos de roteiro, preciosidades que não têm espaço nesse campo maximalista. Observadores é, primariamente, estudo da luxúria perdida e busca por um lugar para o recurso na contemporaneidade. Ainda que talvez faça concessões demais, por vezes restringido a uma composição mecânica e sobreutilização de texto — o que compromete a credibilidade do peso artístico de certos elementos apresentados como tal, em particular o trabalho de Seb —, o longa se destaca pela franqueza de sua depravação e os momentos no qual se permite atingi-la por completo, seja numa consulta ocular silenciosa repleta de homoerotismo, numa festa de Halloween ou em momentos de pura violência catártica.


Com corpos fantásticos, dúbias intenções e perfeito timing, Observadores é uma grata surpresa que chega como celebração pervertida, nostálgica e esperançosa, que vê no declínio da domesticidade familiar um universo de possibilidades muito mais cativantes e fundamentalmente cinematográficas: dispostas em ângulos calculados não para conforto ou verossimilhança, mas para atratividade; em convite ao público para que se permita à vulgaridade do olhar e aos perigos provocantes do mesmo. É experiência ativa, imersiva, prazerosa e desconfortável — felizmente longe de ser para a família toda.


O filme está disponível no catálogo da Prime Video.


THE VOYEURS

EUA | 2021 | 116 minutos

Direção: Michael Mohan

Roteiro: Michael Mohan

Elenco: Sydney Sweeney, Justice Smith, Ben Hardy, Natasha Liu Bordizzo


0 comentário
bottom of page