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  • Foto do escritorThiago Gelli

[Crítica] Crimes do Futuro é anti-distopia da performance queer



Em um sentido coloquial, o medo do corpo é algo lógico e inerente ao decorrer de uma vida. Seja no trauma do nascimento, na insistência da pustulenta acne, nos terrores de doenças furtivas, na viscosidade de fluidos, nos espectros de dores fantasmas ou na morbidez de marcas na tez, a mensagem é clara: tema sua carne.


Tais medos, no entanto — eles mesmos sintomas antinaturais de uma sociedade deveras sobrecarregada de contratos — facilmente se dispersam frente ao corpo do outro. A intimidade consensual em seu estado mais sublime desmantela todos os mecanismos da repugnância, e o que é estorvo particular se torna júbilo expressivo.


Para David Cronenberg, investigar os mistérios da carne sempre levou ao êxtase de uma nova existência em resposta a uma conjuntura opressiva — vide a gênese sadomasoquista de Videodrome - A Síndrome do Vídeo (1983) e o submundo de Crash - Estranhos Prazeres (1996). Dessa vez, sexo se torna cirurgia e o futuro se torna pano de fundo para o conflito entre um artista submerso no status quo e uma efervescente classe decidida a abraçar a visceralidade das mudanças e a nunca mais subjugar seus corpos.


Em Crimes do Futuro, os vanguardistas Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) habitam um mundo sem dor, mas repleto de mutações genéticas supostamente maléficas, as quais destacam e suprimem em suas performances abertas ao público — mas um movimento secreto é capaz de refutar suas crenças. Observado em meio à torrente midiática contemporânea — quando o patrulhamento anatômico remonta ao fundamentalismo religioso e à crueldade da eugenia —, tal cenário se sobressai como uma vasta coletânea de significantes do camp e do queer.


Apesar de estar situado quase inteiramente em círculos de sua alta classe distópica, Crimes do Futuro raramente transparece qualquer compromisso à sociabilidade capitalista. Em espaços fechados, cobertos por luz crepuscular ou puramente inabitáveis, a narrativa se move pelos subsolos urbanos e inevitavelmente satiriza ou afasta tudo que se propõe polido ou ordeiro.



Como uma farsa que emula e corrompe os símbolos da relação de classes representada, a crônica de Cronenberg se assemelha à lascívia do teatro ilegal de Oscar Wilde em A Última Dança de Salomé (dir. Ken Russell, 1988) e aos floreios criativos e ácidos do ballroom. Suas personas artísticas — uma mulher que dilacera a própria face como ritual estético e um homem que acopla múltiplos ouvidos a diferentes partes de seu corpo —, assim como a constante menção a um concurso de beleza interior, evocam pensamentos de drag queens, Amanda Lepore, John Waters, Leonilson, David Wojnarowicz e mais portadores do pincel da carne.


Mas Crimes do Futuro não se limita aos acenos gratuitos à performance queer, e a compreende em nível molecular. Um despertar queer, assim como qualquer desenvolvimento de uma identidade abafada, ocorre como uma erupção cutânea — veloz, impossível de se ignorar e de dentro para fora. Um alerta de que seu corpo sabe de coisas que a percepção externa não está disposta a lhe informar e um lembrete de que, como Cronenberg bem diz, o corpo é realidade (e todo o resto é vacilante).


Ao passo que Saul deixa de remover seus novos órgãos e seu incômodo se agrava (seu organismo rejeita comida, seus resquícios de dor não são mais apagados pela maquinaria idealizada para tal), o artista gradualmente se aproxima à comunidade subversiva que alimenta o apelo de seus atos cirúrgicos, seres quase humanos com um inédito sistema capaz de digerir plástico.



Já nos primeiros momentos do longa, esses novos organismos são apresentados ao espectador através de um jovem menino, prestes a ser assassinado pela mãe que o enxerga como criatura. Prontamente, o filme aponta a ameaça apresentada ao regimento do universo de Crimes: a profanação da santidade reprodutiva.


Antiga histeria cristã vendida à pequeno-burguesia, a ideia de que aberrações perturbem o funcionamento regular da milagrosa reprodução — a mesma que concebeu Jesus — é tão antiga quanto o horror em si. No cinema, ela está lá desde que o doutor Frankenstein criou vida com as próprias mãos e desde que a misteriosa Irena Dubrovna não pôde consumar seu casamento por medo da bestialidade em Sangue de Pantera (dir. Jacques Tourneur, 1942).


Em Futuro, Cronenberg vira o conceito de ponta-cabeça, e o antigo caráter predatório e contagioso de representações do encontro entre “depravados” é substituído por um ímpeto natural e hereditário. Homens que comem plástico geram filhos que comem plástico, e assim consagram uma nova evolução que, ao passo que rudimenta suas noções de etiqueta, aprimora sua capacidade de habitar o sintético mundo novo, além de exceder as condições de existência impostas por Estado e indústria nesse cenário fictício.


Em contraste a Saul e à Caprice e aos párias que devoram barras de plástico roxo, os peões desse jogo social costumam ser apropriadamente unidimensionais: o detetive interpretado por Welket Bungué é um necessário representante da lei em uma obra claramente anárquica, enquanto as lésbicas assassinas corporativas de Tanaya Beatty e Nadia Litz são um divertido aceno ao exploitation e à seletividade legal.



É a notória Timlin de Kristen Stewart que engole cena após cena como exposé vivo da frigidez farsante imposta aos defensores da ordem. Contendo múltiplas explosões cada vez que abre a boca, Kristen divaga brevemente sobre os horrores que acometem novos corpos, a missão ética de amputar e catalogar cada nova formação e, também, ter seu corpo sensualmente aberto por Viggo Mortensen. Ela é pura contenção em um palácio de eterno hedonismo, presa entre uma posição governamental e a energia caótica de seu desejo.


Com suas palavras perfeitamente enunciadas, seu ritmo afobado, suas mãos trêmulas e seus movimentos rápidos, ela esconde por trás das risadas que provoca no público um argumento que Cronenberg já descreveu perfeitamente em seu primeiro longa, e que aqui revisita: “Tudo é erótico” (Calafrios, 1975).


Frequentemente rotulado como o retorno de Cronenberg à estética do body horror, Crimes do Futuro excede seu artifício visual e se consagra como algo além: para o diretor, um retorno pessoal a um olhar que em nada envelheceu; para o público, a retomada da ficção como o expurgo proporcionado por um devaneio pervertido — e não como extensão dos horrores cotidianos que o circunda.

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