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  • Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

[Crítica] Invocação do Mal: A Ordem do Demônio é um fantasma da franquia


“O diabo me obrigou a fazer”, foi o que Arne Johnson disse à justiça em 1981, depois de pegar um canivete e matar seu senhorio com mais de vinte facadas no peito. O caso ganhou fama, foi o primeiro nos EUA em que o acusado se defendeu alegando possessão demoníaca, tese que a corte estadunidense jamais levou a sério, obviamente, sentenciando Johnson a duas décadas de encarceramento. Sabe quem não gostou desse resultado? Sim, o casal cristão mais popular do mundinho terror: Ed e Lorraine Warren, adeptos da teoria de que o garoto falou a verdade. Bom, o sistema judiciário pode não partilhar da opinião dos Warren, mas esse definitivamente nunca foi o caso da franquia Invocação do Mal, toda contada a partir do ponto de vista dos demonologistas — os três filmes trazem o jargão “baseado em uma história real” antecedendo roteiros recheados de espíritos, bruxas e maldições. Ou seja, uma “história real” da mesma forma que Alice no País das Maravilhas é uma história real. E ainda assim, acho mais fácil acreditar na menininha que foi tomar chá com com seres mágicos dentro duma toca de coelho, do que aceitar a proposta deste Invocação do Mal: A Ordem do Demônio (2021), terceiro capítulo da “saga” que, humildemente, pede ao espectador para comprar a ideia de que Arne Johnson foi uma vítima indefesa de forças malígnas, e não um assassino brutal.


E veja, esse é apenas o empecilho moral que assombra a premissa do filme, que como de costume, já tem início in media res, traduzindo: “no meio da ação”. Só que dessa vez, a ação surge enquanto gênero de cinema, porque aparentemente, não há muita diferença entre um exorcismo performado pelos Warren e uma perseguição protagonizada por Jason Bourne. Ou pelo menos é assim que o diretor Michael Chaves faz parecer quando mostra o frenético despejo de um capiroto aleatório de dentro do jovem David Glatzel, interpretado pelo promissor Julian Hillard, que depois de A Maldição da Residência Hill (2018) e WandaVision (2021), já virou rostinho conhecido dos fãs de horror e bruxaria. Infelizmente, o talentoso ator mirim tem sua participação limitada a este prólogo, muito provavelmente porque o verdadeiro David Glatzel já afirmou que a história toda foi uma mentira, acusando Lorraine Warren de usar ele e sua família para capitalizar em cima do fanatismo religioso da época — torta de climão, e a cristã escreveu sobre o caso em dois livros diferentes. A partir daí o roteiro de David Leslie Johnson-McGoldrick, autor de pérolas como A Garota da Capa Vermelha (2011) e Fúria de Titãs 2 (2012), acompanha o caso de Arne Johnson (Ruairi O’Connor), que absorveu o demônio de David e agora precisa provar sua inocência, o que ele só vai conseguir com Ed (Patrick Wilson) e Lorraine (Vera Farmiga) atuando como detetives paranormais no intuito de revelar qual entidade o possuiu durante o cometimento do crime.



Então assim, se você ignorar os desdobramentos reais e embarcar na fantasia do projeto, existe ali o potencial para uma boa mistura do subgênero de horror sobrenatural com histórias de investigação policial — PORRA, melhor ainda se ela for arrematada num enredo de tribunal ao estilo do que foi feito no eficiente O Exorcismo de Emily Rose (2005). Não é o caso, porém, porque Invoca 3 (nosso apelido carinhoso pra essa joça) não finca o pé nem numa coisa, nem na outra — e nem na terceira também. Na verdade, esse terceiro capítulo já abandona a atmosfera sobrenatural junto com a fórmula dos outros filmes, que se concentravam num único lugar mal-assombrado. Nisso, acaba se perdendo numa estrutura frouxa que fica saltando de maneira desastrada entre a procura dos Warren por pistas em diversas locações, e a rotina de Arne na prisão, enquanto aguarda julgamento. E não digo “desastrada” como xingamento gratuito (gratuita é a referência a O Exorcista que enfiaram nos minutos iniciais), mas sim porque o filme abusa dos establishing shots nessas transições — pra quem não conhece, falo dos “planos de estabelecimento”, aqueles que mostram rapidamente o cenário onde a próxima cena vai se desenrolar. E se os Warren estão sempre movendo-se de um lugar a outro, justificando que sejamos apresentados às novas locações, Arne fica num só o tempo todo, e aí vira piada toda vez que a montagem faz questão de abrir suas cenas com um plano idêntico do exterior da penitenciária.


OK, pera aí, talvez esse detalhe tenha sido um toque de gênio dos montadores Christian Wagner e Peter Gvozdas, antecipando que seria fácil para o espectador esquecer quem está onde e quando levando em conta a preguiça do roteiro. Não que eu esperasse um texto muito elaborado, mas confesso que também não estava pronto para conseguir prever diálogos inteiros que, de tão básicos, parecem nunca ter sofrido uma segunda revisão — aquele que termina em “aqui é a minha casa” dava pra citar quase um minuto antes de Vera Farmiga ser obrigada a proferi-lo (por um bom montante de dinheiro, espero). De modo que, se no Invoca 1 e 2 conseguíamos deixar de lado o charlatanismo do casal Warren graças ao carisma dos atores e ao conhecimento que pareciam esbanjar nos assuntos sobrenaturais, aqui o carinho por eles já não segura o momento no qual, depois de ser advertida que estava na cena de um assassinato, Lorraine anuncia: “uma coisa ruim aconteceu aqui”, ao que fiquei esperando o detetive junto dela responder algo como: “não brinca, Sherlock.”



E na disputa pelo departamento mais preguiçoso, montagem e roteiro encontram adversário à altura na direção de Michael Chaves, que substitui o renomado James Wan e consegue ratificar o talento inegável para assustar pessoa nenhuma, aptidão que ele já tinha demonstrado quando cometeu o péssimo A Maldição da Chorona (2019). Teimando no mesmo tipo de jumpscare fajuto que abundava aquele desastre, Chaves falha em absolutamente TODAS as tentativas de assustar. Zero surpresas, afinal, o realizador insiste em anunciar à plateia não só quando o susto vai acontecer, mas também como e de onde ele vai vir. É a mesma cartilha de sempre: o som baixa, impera o silêncio por alguns segundos e aí alguma coisa salta na tela, como no momento em que Arne cai de bunda num corredor e fica encarando o escuro, de onde um bicho vem correndo, ou como naquele outro em que David aproxima o rosto de um colchão d’água, de dentro do qual salta um braço cadavérico. Pior do que essa obviedade, é a tendência de Chaves para entregar cenas picotadas num mosaico de planos fechados que nunca nos permitem conhecer os ambientes e entender bem o que está acontecendo, especialmente nos momentos mais tensos — quando o negócio vira um filme de ação, com direito ao Patrick Wilson se atirando para desviar… de um espírito. Até lugares conhecidos como a casa dos Warren, que já foi cenário de um filme inteiro (Annabelle 3, 2019), ficam confusos na condução esculhambada desse moço. Seu momento mais inspirado, aliás, é justamente quando decide imitar o James Wan e repete um plano presente nos dois Invocação do Mal anteriores; a câmera invadindo a casa dos personagens e passeando pelos aposentos a fim de apresentar a geografia do local — e até nisso o cara erra o penico, pois dessa vez a casa não é importante ao filme.


A cagada vai um pouco mais longe e ainda afeta também o desenho de produção, tão subaproveitado quanto o personagem de Shannon Kook, Drew; antes parte importante do time dos Warren, aqui ele surge praticamente mudo e sem função alguma. E pode-se fazer todo tipo de crítica à direção do James Wan nos outros filmes, mas pelo menos ele sabia valorizar a bundinha e os braços do Shannon Kook, que fica lindinho demais nas roupas justinhas da década de 1970 (vou deixar imagem abaixo para ilustrar). Fica apagado, portanto, um dos departamentos que costuma ser destaque até nas produções mais mequetrefes do Invocaverso. E por departamento eu me refiro à direção de arte, não à bunda do Shannon Kook, que deveria ser uma instituição. Perdem-se aqui cenários criativos que tinham grande potencial, como o túnel repleto de estátuas santas, ou o necrotério no qual uma das macas parece um altar de morbidez dedicado ao corpo que ali espera pela autópsia, quem sabe até a enfermaria da prisão, rodeada de janelas que absorvem o clima da iluminação externa; e, meu favorito, o canil que atua como corredor polonês entre dois aposentos.

[Imagem de Invocação do Mal (2013), pra lembrar de coisa boa:]


Penso que, lá pelas tantas, esperei demais dum filme que tenta (outra vez) usar a integridade física do Ed como ponto de tensão da narrativa — uma rápida busca no Google revela o grande spoiler: Ed morreu só em 2006. E mesmo pra quem não sabe disso, é difícil temer pelo personagem, porque a vulnerabilidade do cara vai e vem conforme a necessidade do roteiro; Ed às vezes precisa de bengala para caminhar, o que não impede ele de correr e segurar Lorraine na beira de um penhasco. Mas cá estou, exigindo coerência num projeto que joga Suspicious Mind na trilha depois de mostrar a personagem da Vera Farmiga provando seus dons a um policial cético, acreditando que isso será um comentário engraçadinho sobre a descrença do oficial. Aliás, mais do que os sustos, o que realmente arrepia é a falta de timing das piadas, que em termos de tosqueira, só perdem para o flashback completamente despropositado envolvendo as versões jovens de Ed e Lorraine, que infelizmente não pôde ser interpretada por sua irmã (e sósia) Taissa Farmiga, pois já tinham queimado a atriz no pavoroso A Freira (2018).


Desperdiçando ainda a única boa ideia do roteiro, uma perseguição acontecendo simultaneamente em duas “realidades” diferentes, e que remete a algo similar feito no excelente Déjà Vu (2006), Invocação do Mal: A Ordem do Demônio se joga de vez na cova da mediocridade quando sente que precisa introduzir uma vilã sem personalidade, amarrada no resto da história por reviravoltas dignas de A Usurpadora. Agora, se essa pataquada toda está ou não incluída no jargão “baseado em uma história real”, não sei, a certeza que falta ao casal Warren, mas que não escapa à vã filosofia das coisas que existem entre o céu e a terra, é a seguinte: a justiça pode não ter acreditado no Arne Johnson lá em 1981, mas eu estou pronto para aceitar caso, um dia, a equipe e o estúdio responsáveis por esse filme queiram alegar que “o diabo me obrigou a fazer”.



THE CONJURING:

THE DEVIL MADE ME DO IT

EUA | 2021 | 112 minutos

Direção: Michael Chaves

Roteiro: David Leslie Johnson-McGoldrick

Elenco: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Ruairi O'Connor, Sarah Catherine Hook, John Noble, Julian Hilliard, Eugenie Bondurant, Steve Coulter, Shannon Kook


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