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  • Foto do escritorPaulo Eduardo Garcia

[Crítica] Skull: A Máscara de Anhangá é um slasher nacional que constrói uma mitologia cativante



Jason Voorhees e Michael Myers que me perdoem, mas um slasher que se passa na cidade de São Paulo ao som de Mototáxi do Amor merece seu reconhecimento. Skull: A Máscara de Anhangá (2020), dirigido por Armando Fonseca e Kapel Furman, é um divertido exercício de antropofagia que mistura artefatos pré-colombianos mortais, personagens equipados com lança-chamas, uma investigadora de moral duvidosa e um padre que enfrenta o mal empunhando uma espada retirada de uma escultura sacra. E claro: tudo isso amalgamado com muito sangue e vísceras.


A narrativa acompanha a descoberta de uma curiosa máscara pré-colombiana na Amazônia - em seguida levada para São Paulo. Não demora para o objeto místico se manifestar, devorar alguns corações humanos e encontrar um hospedeiro corpulento (Rurik Jr.) que se transforma num assassino obstinado a deixar um rastro de sangue pelo caminho. Enquanto o vilanesco Tack Waelder (Ivo Müller) pretende colocar as mãos na máscara para benefícios próprios, Manco Ramirez (Wilton Andrade), herdeiro da guarda do artefato, fará de tudo para impedir a entidade mascarada de seguir com seus desígnios apocalípticos. A investigadora Beatriz Obdias (Natallia Rodrigues) se embrenha nessa trama ao tentar solucionar os crimes que vão acontecendo e parar a progressiva contagem de corpos.



Aos fãs do gore, Skull é uma refeição completa: ao longo de seus 90 minutos acompanhamos toda sorte de mortes criativas (e gráficas). Não faltam membros decepados, cabeças explosivas, rostos arrancados, peitos dilacerados e até tripas sendo usadas para asfixiar as vítimas. As situações exageradas nos colocam em uma posição de confusão: é para fechar os olhos de pavor ou rir (de nervoso)? A tênue linha entre o horror e o humor (muito comum no slasher, inclusive) é explorada em vários momentos de forma deliciosa. As referências aos quadrinhos (é possível perceber influência das publicações Hellboy, Preacher e Spawn) ajudam na construção de cenas essencialmente plásticas que investem na exploração da estética do sangue e das vísceras. Os efeitos especiais (e é preciso celebrar como muita coisa é feita de forma prática) possuem alta qualidade técnica, sendo um espetáculo por si só que funciona de maneira deleitosa dentro dos moldes estéticos estabelecidos (antes de reclamar do sangue viscoso, das tripas “não realistas” ou do exagero num geral, é preciso entender a diegese que está sendo explorada e perceber como essas escolhas visuais dialogam assertivamente com ela). O filme também se inspira no universo da luta livre (a própria máscara craniana tem um estilo que remete ao contexto das peças utilizadas pelos lutadores), contando com sequências coreografadas que divertem (num estilo bem Robert Rodriguez) e o ex-campeão brasileiro da BWF, Rurik Jr., numa excelente performance do assassino mascarado.


Destaca-se o design de personagens (assinado por Kapel Furman) que nos apresenta maravilhosas pérolas visuais, como a própria Máscara de Anhangá (o artefato torna-se uma personagem que surpreende ao mover-se com suas longas “pernas” esqueléticas), o assassino (envolto em vísceras animadas que lançam sua machete) e a criatura mumificada (que aparece nas viagens astrais). A Direção de Arte (encabeçada por Lize Borba) faz escolhas carinhosas e assertivas ao investir em detalhes que ajudam muito na construção narrativa: numa cena em específico, uma personagem tem o peito rasgado ao meio enquanto em sua camiseta uma Marion Crane estampada agoniza num grito eterno. Outro detalhe maravilhoso: quando a máscara se une ao hospedeiro, o personagem está trajando uma roupa toda branca que, conforme a contagem de corpos vai aumentando, se tinge de vermelho até tornar-se totalmente empapada com fluidos e tripas. É um lembrete sobre o nível de sangue que apenas aumenta (o que, inclusive, tem sua importância e significado na trama).



Um dos grandes acertos de Skull é a construção e condução de sua mitologia particular que, num movimento de antropofagia, deglute influências diversas da América Latina. O universo construído é rico e a dosagem certa entre o que é explorado e o que fica no território das margens evita didatismos desnecessários e garante o espaço ideal para o público confabular sobre as brechas e sonhar com a expansão desse cosmos ficcional. É preferível que fiquem pontos a serem desenvolvidos dessa mitologia fílmica ao invés dela se tornar saturada nos 90 minutos da obra. As regras bem estabelecidas (que por vezes parecem um pouco exageradas, mas não são assim todos os elementos ritualísticos religiosos?) são criativas e endossam situações narrativas - como a relação simbiótica entre máscara e hospedeiro, a mão mumificada que funciona como bússola ou o assassino que caminha em “linha reta” por São Paulo (cometendo chacinas) até o ponto onde um certo artefato está sendo guardado.


O desenvolvimento de um slasher brasileiro autoconsciente que celebra elementos latino-americanos por si só já trilha um caminho revigorante na história do subgênero, trazendo sua dose de subversão. Entretanto, seria positivo ver essa ressignificação estender-se um pouco mais - ainda imperam certas violências um tanto fetichizadas contra o corpo feminino, algo que poderia ser repensado. Em contrapartida, Beatriz se apresenta como uma personagem feminina tridimensional e interessante de se acompanhar em tela. A investigadora (que poderia muito bem ter saído de um filme noir) personifica eficientemente a corrupção da polícia brasileira ao apresentar uma moral corrompida. Ao mesmo tempo, sua personagem coloca em destaque uma presença feminina cheia de agência que transita por um ambiente essencialmente masculino e machista - ao longo da narrativa, a policial parece precisar provar sua força e eficácia para os colegas com certa frequência. É justamente essa dualidade de Beatriz que nos coloca numa posição difícil e distante da certeza do preto no branco: devemos torcer a favor ou contra essa personagem? Sabemos que ela atira primeiro e pergunta depois, mas mesmo assim o papel de vilã não lhe parece apropriado.



Existe em Skull um embate entre o antigo e o moderno: a máscara é anterior à invasão dos europeus ao Novo Mundo, mas o longa se desenrola numa temporalidade contemporânea. É curioso perceber como a entidade slasher - uma divindade em tempos pré-colombianos - passa despercebida (mesmo sendo um brutamontes todo lambuzado de sangue e enrolado em tripas) na selva de pedra que é a metrópole. A escolha das locações foi essencial para salientar esse contraste e trabalhar subtextos narrativos: em vários momentos acompanhamos a criatura assassina transitando pelo Vale do Anhangabaú, região central da cidade de São Paulo e cujo nome tem origem tupi podendo ser entendido como “rio ou água do mau espírito” - afinal, corre ainda no subsolo o rio de mesmo nome, cujas águas os indígenas acreditavam que causavam mazelas físicas e espirituais. Uma conexão perspicaz com a trama do filme e uma lembrança ancestral no espaço urbano e contemporâneo.


Embora Skull tenha suas raízes narrativas num mundo de mais de quinhentos anos atrás, as máculas do colonialismo ainda contaminam as entranhas da nossa nação e possuem ecos nos dias atuais: a questão da imigração boliviana e o descaso com os povos indígenas e suas culturas são pontos tocados pela produção. Em certo momento, por exemplo, o vilão acredita que seria uma afronta deixar a máscara nas mãos dos povos originários que - pasmem! - são donos por direito do artefato. Investir nesse background (mesmo com um desenvolvimento não muito aprofundado) é um dos acertos do filme que entende o potencial do horror enquanto gênero de discurso crítico e político - algo sempre muito satisfatório de se presenciar em nosso contexto cinematográfico nacional.


Aos interessades no festival de sangue e tripas (mas com a mão na consciência da crítica social), Skull: A Máscara de Anhangá estreia no Canal Brasil no Cine Terror neste 30 de outubro (na madrugada da noite de sexta para sábado às 1h10min). Além disso, o filme estará disponível em variadas plataformas digitais a partir do dia 28 de outubro.


SKULL: A MÁSCARA DE ANHANGÁ

Brasil | 2020 | 90 minutos

Direção e Roteiro: Armando Fonseca, Kapel Furman

Elenco: Tristan Aronovich, Natallia Rodrigues, David Wendefilm, Guta Ruiz, Thiago Carvalho, Ivo Müller, Gilda Nomacce, Eduardo Semerjian, Greta Antoine


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