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  • Foto do escritorYuri Cesar Lima Correa

[Crítica] Não Feche os Olhos... Para não ter pesadelos com esse filme

Atualizado: 17 de mai. de 2021



“Não gostei porque não entendi”. Eu sempre acho engraçado quando alguém pega um filme no estilo de Não Feche os Olhos (Come True, 2020) e diz algo desse tipo. Afinal, o que é “entender um filme”? É entender a trama? Os personagens? A moral da história? Já dizia o meme: a quem interessa entender um filme? Abaixo a ditadura do sentido! Brincadeira, mas assim: lá em 1929 o cineasta Luis Buñuel já tentava dar fim nessa besteira quando fez o curta-metragem Um Cão Andaluz, que consiste basicamente numa colagem de cenas aleatórias e incômodas — como aquela do olho e a navalha. Buñuel não queria que a linguagem do Cinema ficasse engessada e limitada por causa das regrinhas de roteiro, montagem e enquadramento que se fortaleciam na época. Afinal, a Arte pode ser apreciada mesmo que não faça sentido (alô, pintura abstrata?), e esse era o ponto de Um Cão Andaluz; ser perturbador, ainda que desprovido de roteiro, história, trama etc. Não Feche os Olhos não chega nem perto de ser tão experimental quanto o curta do Buñuel, mas definitivamente é um filme mais interessado em oferecer uma experiência arrepiante, do que em distribuir explicações.


Do início: Sarah Dunne (Julia Sarah Stone) está com problemas em casa, aparentemente ela brigou com sua mãe e tem dormido enrolada em cobertores no escorregador de uma praça. À noite, ela adormece vendo os pontinhos brilhantes no preto do céu irem se apagando um a um. Nos seus sonhos (ou seriam pesadelos?), a imagem desliza sempre para frente, atravessando cenários monocromáticos até chegar num vulto sem rosto. Acordada, ela segue sua rotina sem saber onde vai passar a próxima noite, até que fica sabendo de um grupo de cientistas procurando por voluntários que serão analisados enquanto dormem. Juntando o útil ao agradável, Sarah se dispõe a participar do experimento e… Bom, é aí que as coisas começam a se complicar.



Eficiente desde a sequência inicial, o filme já começa dentro de um dos pesadelos de Sarah e consegue, numa tacada, intrigar com as imagens desconcertantes que apresenta, enquanto também configura a atmosfera baseada no medo que vai explorar ao longo da narrativa — mais do que isso, essa abertura serve de aviso para que poupemos as expectativas de encontrar um sentido literal no que assistiremos a seguir; estamos no mundo dos sonhos. Sem contar que é sempre um alívio quando exemplares do gênero de Horror conseguem burlar aquele clichê insuportável da cena de sonho que culmina no personagem acordando suado e ofegante. Aqui, pelo contrário, as cenas no subconsciente de Sarah tornam-se as partes mais curiosas do filme, já que os cenários e vultos lá dentro parecem esconder símbolos que, devido à natureza misteriosa da trama, urgem serem interpretados pelo espectador.


Aliás, o filme cultiva essa paranoia do lado de fora dos sonhos também; a cidade, por exemplo, é muito vazia, e mesmo quando aparecem alguns figurantes, seus rostos estão fora do alcance do foco ou do enquadramento. Além disso, as pessoas com quem Sarah interage exalam um cheirinho de arquétipo, ou seja, parecem que estão ali para representar alguma coisa. E aí dá pra perguntar: representar o quê? Bom, nesse caso é preciso realmente decifrar a mensagem da obra. Mas não se preocupe, se é tão importante assim pra você entender o sentido da trama, o roteiro dá uma ajudinha quando divide a narrativa em capítulos — são 4: “A Persona”, “Anima e o Animus”, “A Sombra” e “O Eu”. Para quem não está familiarizado, esses são conceitos definidos pelo famoso psicanalista Carl Jung para diferenciar partes da psique humana. Ficou complicado? Ok, resumindo: “Persona” é a máscara que usamos para a sociedade; “Anima e Animus” são, respectivamente, o feminino e o masculino dentro de todos nós; “Sombra” é aquilo que rejeitamos; e, por fim, o “Eu” é a soma de tudo o que somos, a junção do consciente com o inconsciente. Logo, ao nomear seus capítulos com esses conceitos, o diretor e roteirista Anthony Scott Burns estabelece que Sarah está saindo de um nível muito superficial do seu autoconhecimento e caminha em direção ao encontro consigo mesma, e que nesse trajeto ela vai precisar “colocar a casa em ordem” — noutras palavras: lidar com seus arquétipos junguianos.



E seguindo com as teorias junguianas, podemos também compreender um pouco mais sobre os sonhos de Sarah. Sem revelar grandes spoilers da trama (afinal, é um assunto discutido pelos cientistas do filme), não demora a surgir o conceito de “Inconsciente Coletivo”, outra ideia de Jung. Esta propõe que existe uma coleção de imagens e símbolos que todas as pessoas têm em comum no subconsciente, herdadas dos nossos antepassados. O vulto sem rosto nos pesadelos de Sarah é um arquétipo disso, pois trata-se de uma figura ameaçadora mergulhada nas sombras e sem identificação aparente, elementos que despertam o medo em qualquer um. Portanto, dá para interpretar que as sequências monocromáticas são, na verdade, mergulhos nesse Inconsciente Coletivo proposto por Jung, e aí faz todo sentido o modo como Anthony Scott Burns (que também assina a fotografia do projeto) retrata o universo onírico, fazendo a câmera deslizar entre cenários variados através de portas e passagens de diversos tipos, como se pulasse de um subconsciente para o outro — todos, porém, revestidos pela mesma estética monocromática.


Aliás, Burns consegue fazer mais do que apenas “mostrar” a ideia, ele a coloca em prática na narrativa do filme. Há uma cena, por exemplo, acompanhando dois voluntários no estudo científico enquanto sofrem uma crise de paralisia do sono, que oferece os seguintes elementos: tem personagens ficando alarmados com algo que não percebemos o que é, cortes mais rápidos, uma ameaça chegando por trás de uma pessoa que não sabe estar em perigo e, por fim, a música crescendo em tons ominosos — aliás, além de diretor, roteirista e fotógrafo, Anthony Scott Burns também assina a trilha. Trocando em miúdos: dá pra se cagar de medo sem precisar compreender a trama ou sequer o que tá rolando na cena. Burns se utiliza de um arsenal de coisas que metem medo em qualquer indivíduo, e desse modo divorcia-se da obrigatoriedade de “fazer entender o filme”. Suas composições são tão eficientes, inclusive, que sou capaz de apostar: um público desavisado poderia assistir a algumas sequências isoladas de Não Feche os Olhos e, ainda assim, ficar tão arrepiado quanto aqueles que acompanham a narrativa do início ao fim.

E o clímax faz jus a este empenho, criando uma sequência apavorante aos moldes de A Bruxa de Blair (1999). Uma pena, portanto, que o filme decida apresentar a “solução” do seu mistério nos segundos finais literalmente escrevendo na tela a “resposta” para a situação de Sarah. E o problema não é nem o plot twist em si, que funciona! Realmente funciona, e digo mais: repensar o filme sabendo da reviravolta engrandece a experiência como um todo, justifica o senso de anacronismo daquele universo, complexifica as relações entre os personagens e até torna algumas cenas ainda mais assustadoras — basta lembrar dos pontos luminosos que se apagam no céu noturno enquanto Sarah adormece na praça e se perguntar: será que eram estrelas? Então não, não é a revelação final que enfraquece o desfecho, mas o modo como o filme nos entrega ela, reciclando inclusive uma piada boba que foi meme há, sei lá, uns dez anos? Tô chutando. Faz parecer que tudo o que vimos foi para justificar essa zoação, talvez existissem maneiras melhores de introduzir o plot twist. Aliás, por mim o filme tinha acabado no plano que vem imediatamente antes a este último, encerrando numa imagem com potencial icônico e que diz muito mais sobre a protagonista do que a gag bobinha que vem em seguida.


Ainda bem, Não Feche os Olhos oferece um bocado de boas ideias e arrepios antes desse deslize final, o que é suficiente para insuflar pelo menos alguns pesadelos. E o multitarefa Anthony Scott Burns fica como um nome para se ficar de olho. ALIÁS, nós do Esqueletos conversamos com o diretor canadense e discutimos o filme, Cinema e seu cachorrinho chamado Agent Cooper, confira a nossa entrevista com o Anthony.



CANADÁ | 2020 | 105 minutos

Direção: Anthony Scott Burns

Roteiro: Anthony Scott Burns, Daniel Weissenberger

Elenco: Julia Sarah Stone, Landon Liboiron, Carlee Ryski, Christopher Heatherington, Tedra Rogers


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