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[XVII Fantaspoa] Os prazeres delirantes de Playdurizm

Foto do escritor: Alvaro de SouzaAlvaro de Souza


Um jovem acorda assustado dentro do seu quarto neon. Saindo dali ainda um pouco desnorteado, ele se depara com um casal que diz ser seu colega de quarto e a ficante dele. A dupla não demora a perceber que algo está estranho com o rapaz; ele perdeu completamente a memória. Tentando voltar a se familiarizar com o mundo de cores vivas em que habita, o protagonista irá se deparar com situações no limite do grotesco e do sensual e também com fragmentos de memória que parecem saídas de outra vida. Esta é a sinopse do interessantíssimo Playdurizm, longa de estreia do diretor tcheco Gem Deger (que também estrela o filme no papel do protagonista sem memória) e que nesse momento faz parte da programação do XVII Fantaspoa.


Olhando a lista de filmes que fariam parte da programação do festival, Playdurizm me chamou atenção pela sinopse e, em seguida, o trailer me ganhou na hora. As cores vivas, a sexualidade transbordando, tudo completamente estilizado numa pegada deviant e instigante; as minhas expectativas eram altas e, mais do que supridas, elas foram superadas. Queer até a medula, Playdurizm é uma história trágica, mas ao mesmo tempo um filme sobre o prazer que o cinema pode nos dar.



Na deliciosa primeira parte nós estamos tateando junto com o protagonista este apartamento e este mundo novo do qual ele faz parte. As cores são saturadas, o lugar parece saído de um sonho delirante e nessa realidade em que ele foi inserido, tudo transpira exagero. A violência parece não ter peso nesse mundo, o sangue tem uma cor viva, o vômito tem um brilho neon, prazer e dor parecem se misturar tanto nos seus sonhos eróticos quanto nas coisas que acontecem na sua frente. Em meio a tudo isso ele ainda tem que lidar com o seu desejo cada vez maior pelo colega de quarto, um cara tão gostoso que parece ter saído de uma revista beefcake, e que demonstra um carinho tão grande pelo protagonista que, para ele, beira o incompreensível.


Ao espectador é oferecida uma verdadeira overdose sensorial neste primeiro momento. Gem Deger usa seu filme como uma verdadeira ode ao prazer que o cinema pode dar ao espectador, a beleza das cores exageradas, o deleite das cenas filmadas com sensualidade e desejo — um personagem costura um machucado enquanto geme fortemente, outra cena já envolve sangue menstrual, e outra traz o colega de quarto mastigando uma fruta que ele tira da boca e dá ao protagonista para comer. Ainda há a beleza do corpo do colega de quarto, que como objeto de desejo do protagonista, é objetificado de todas as formas possíveis pela câmera. É o artifício sendo usado apenas com o intuito de dar prazer a quem está assistindo.



As situações absurdas vão se acumulando ao longo do filme, corpos não se decompõem, cintos que na verdade são armas criadas por nazistas, fantasias BDSM invadindo a realidade e, por fim, a chocante explicação sobre os eventos que ocorreram até ali. A partir desse momento, tudo o que vimos é ressignificado e o tom muda drasticamente. Comentar mais que isso seria um spoiler e não quero estragar a experiência de assistir a Playdurizm pela primeira vez.


Toda a odisseia construída pelo diretor até esse ponto de virada transforma-se em outra coisa com tons mais melancólicos e trágicos, mas o sentimento geral causado pelo filme se mantém. É, sim, uma história sobre o prazer único que o cinema pode nos dar, mas é também sobre como a Arte pode se tornar um lugar de utopia, o único lugar que se tem para fugir quando a realidade é traumática, violenta e cruel. Dadas as devidas proporções, um filme sobre o cinema como um ambiente de catarse e de válvula de escape vem somar a uma realidade tristemente comum nesses estranhos tempos que parecem nos preparar para o apocalipse. Sem duvidas, é um trabalho belíssimo desse diretor iniciante e imperdível para fãs de cinema queer.


Numa nota menor, gostaria de dizer que, para mim, foi impossível não pensar nos trabalhos de Gregg Araki enquanto assistia Playdurizm. O senso de humor, a violência, o carinho com que relações queer e personagens desajustados são representados, mas sem tirar o sentimento incômodo de que eles existem em um mundo implacável e que não tem nada de acolhedor. A comparação com o trabalho do Araki é talvez o maior elogio que eu possa fazer ao longa. Tudo aqui lembra a melhor fase do diretor (principalmente seu ótimo Estrada para Lugar Nenhum, 1997). Não sei até que ponto ele foi uma influência para o Deger, mas essas semelhanças só acrescentaram ao filme.


Playdurizm e muitos outros filmes fazem parte do XVII Fantaspoa, totalmente online e gratuito, disponível na plataforma Wurlak.


PLAYDURIZM

Tchéquia | 2019 | 88 minutos

Direção: Gem Deger

Roteiro: Gem Degerm Morris Stuttard

Elenco: Austin Chunn, Gem Deger, Issy Stewart, Christopher Hugh James Adamson, Holden McNeil


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