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  • Foto do escritorLuiz Machado

[Crítica] Subverta ou morra: Notas sobre A Queda da Casa de Usher

“Venha ler o último rito, venha entoar sem medo / Um réquiem para aquela que partiu tão cedo”.

Com esses versos melodiosos do poema Lenore, Edgar Allan Poe se debruça em um dos temas mais recorrentes de sua pequena (mas expressiva) produção literária: o luto. Com títulos como O Corvo, O Poço e o Pêndulo, O Coração Delator e até Annabel Lee, a obra de Poe faz soar um sino fúnebre, precedendo a morte e a dor. E ainda que esses temas sejam recorrentes em (literalmente) qualquer produção de horror, um dos realizadores contemporâneas que mais parece se deliciar neles é Mike Flanagan.


Queridinho dos fãs de horror que adoram um bom melodrama sobre trauma e problemas familiares, Flanagan puxa e repuxa tudo o que sabemos e aquilo que nos perguntamos sobre a finitude da existência humana. E quando levanta a possibilidade de que, talvez, a morte não seja o capitulo final, sua filmografia mergulha no existencialismo sentimental exacerbado com a mesma tranquilidade de um fantasma eternamente preso no fundo de um lago. Que todos vamos morrer, sabemos, mas o que vem depois para os que se foram? E também, o que sobra para os que ficam?


Como refletido em Maldição da Mansão Bly (2020), "todas as histórias de amor são sobre fantasmas, mas nem todas as histórias de fantasmas são sobre amor". Cimentado, portanto, como um grande romântico do horror moderno (e uma rosinha perdida no meio do espinhento catálogo de produções originais da Netflix), Flanagan retorna para seu grand finale com A Queda da Casa de Usher, projeto que marca o fim de seu contrato com a Tudum.


A minissérie é inspirada no conto homônimo de Poe, e costura uma colcha de retalhos feita de várias outras obras do autor — incluindo contos, poemas e seu único romance. É assim um medley dos greatest hits do escritor, embalado com a estética prestigiosa e apoteótica já muito bem estabelecida pelo cineasta. Então, o que poderia dar errado?



Muito se fala a respeito do gótico em Poe, ou do mórbido em Poe, ou até mesmo do estranho em Poe — esse "estranho" que, inclusive, ajudou um certo H.P. Lovecraft a estabelecer as bases de seu horror cósmico. Porém, pouco se fala sobre o ridículo em Poe.


Embora o autor seja reconhecido como um dos grandes nomes do romantismo estadunidense, sua vida foi decadente até a morte, e ele nunca viu suas obras ganharem o sucesso que conquistariam na aurora da modernidade. Junto ao tom autobiográfico de vários de seus contos, a bibliografia do Corvo Humano passa ar de decadentismo, de podridão e corrupção. Mas talvez o exagero e o lado anticonvencional sejam os aspectos mais interessantes de sua bibliografia.


O Coração Delator e O Gato Preto são histórias sobre assassinos trapalhões, enquanto as mulheres retratadas em Ligeia, Berenice e Lenore são quase personificações da Noiva Cadáver. Até Assassinatos na Rua Morgue nada mais é que, em essência, a versão sangrenta e exploitation da novela Caras e Bocas, com um símio usando sangue como tinta. Existe uma linha muito tênue entre o horror e o cômico (macacos podem ser muito engraçados ou completamente aterrorizantes), e nossos melhores contadores de histórias sabem cavalgar nela como um habilidoso montador de touro mecânico.


E claro, conhecendo o trabalho do marido da Kate Siegel, esse exagero puxado para o ridículo era a última coisa que se esperava encontrar em A Queda da Casa de Usher. Vamos e convenhamos, Flanagan é um pouco piegas e se leva mortalmente a sério. Não é necessariamente um demérito de sua obra, mas os tons azulados, os cenários bucólicos e chuvosos, bem como suas reflexões sobre a vida e a morte, por mais estilizados que sejam, estão longe do que chamaríamos de camp. Há uma honestidade muito singela em seu trabalho, mas que é entregue de maneira muito séria, tão austera que, em algumas de suas obras, acaba soando um pouco autoindulgente — particularmente não fui o maior fã de como isso foi usado em Missa da Meia-Noite.


Porém, desde de seu primeiro trailer, Casa de Usher parecia muito mais uma temporada de American Horror Story realizada com pompa e circunstância, do que com um novo segmento da antologia iniciada por A Maldição da Residência Hill. A Ryan Murphyzação de Mike Flanagan não estava prevista no Bingo de 2023, mas aparentemente ela veio a galope. E o senso de ridículo que antes parecia tão improvável nas mãos do Mikezinho, explode em tela desde o primeiro episódio.


Não é que Flanagan deixe de lado seus monólogos enooooormes, ou qualquer de suas marcas registradas — o drama familiar, os romances falidos, as tragédias anunciadas, ou as lições de moral um pouco “família” demais ali pro final. Pelo contrário, tudo está aqui, e tudo contribui para tornar Casa de Usher uma versão completamente aloprada de Succession. É a história de uma dinastia rica caindo aos pedaços, só que feita para você que não acha Shiv Roy um ícone gay satisfatório. A bem da verdade é que as comparações com Succession são tão óbvias que precisamos dar outros nomes aos bois: na verdade isso aqui tá meio que servindo novela Império.



As figurinhas carimbadas do diretor estão todas aqui, mas em versões completamente repaginadas. A subversão ajuda no caso de colaboradores frequentes, que evitam cair no próprio estereótipo — é sempre uma armadilha, vide o Jack Sparrow gótico dos filmes do Tim Burton. É um refresco, portanto, ver os rostinhos que estamos tão acostumados a assistir com olhinhos marejados e chorosos, agora em versões completamente espalhafatosas, opulentas e desbocadas.


Mas a grande surpresinha aqui são as novas colegas de classe que entraram para o auxílio emergencial Flanagan em performances maníacas e deliciosas. Mary McDonnell (Pânico 4) e Willa Fitzgerald (série Scream) brilham como versões diferentes de Madeline Usher, uma mulher ambiciosa que esconde vários segredos por baixo de sua sedosa peruca falsa e, acredite, esse texto poderia se tornar uma grande ode para a peruca da diva. O acessório é quase um personagem à parte — e existe uma Wig Reveal envolvendo-o que é uma das coisas mais involuntariamente engraçadas feitas em qualquer outra mídia esse ano. São camadas de perucas. EXISTEM MUITAS PERUCAS NESSA SÉRIE!



Mas voltando a tudo que não é uma peruca: aqui, o que mais cativa é a maneira como Flanagan consegue enquadrar toda a narrativa; desde a derrocada de uma dinastia de ricaços, até as tragédias passadas que os levaram até ali – quase que em um tom de autoparódia. É a Maldição da Residência Hill onde todos os personagens não só vivem no inferno, como também escolheram morar lá.


E é nesse ponto que o espetáculo do ridículo entra em ação da forma mais fantástica. Sim, A Queda da Casa de Usher ainda é uma história de luto, ainda é sobre pessoas lidando com a finitude da vida mortal e se preparando para o que o outro lado tem a oferecer. Porém, aqui não estamos lidando com heróis trágicos, românticos inveterados e nem mesmo padres em crise de fé. Em vez disso, é como se Flanagan tivesse hackeado um episódio de Sai de Baixo e deixado suas marcas ao vivo e a cores.


Monólogos longuíssimos se tornam discursos políticos altamente autoconscientes do quão são vergonhosos, enquanto as mortes e momentos grotescos (e há um bocado deles ao longo da série) adotam um teor parecido com a franquia Premonição. É um pot-pourri de carnificina sanguinária adornado de elementos e estilo que não se levam nenhum pouco a sério.


Anedota: a cena envolvendo espelhos é disparada um dos melhores momentos de horror do ano.


Porém a maior dádiva da minissérie acaba sendo seu maior inimigo também. Histórias que exploram o quão descartável uma vida humana pode ser, devem tomar muito cuidado para não soarem apenas descartáveis também. Se um personagem morre e ninguém liga, pode ser engraçado nas primeiras duas vezes que acontece ("uau, essas pessoas REALMENTE se odeiam"), mas a partir da terceira ou quarta vítima, você começa a se perguntar: se ninguém liga, porque eu deveria ligar?


Casa Usher tenta amarrar isso no final e até que faz bem, mas dentro do tóxico formato Netflix que te obriga a comer o bolo até a última migalha, como se todos fôssemos o personagem Bruce de Matilda. Falta tempo para saborear essas mortes, para refletir sobre elas. O formato é nocivo e, por vezes, repetitivo. Então fica a dica: mute suas redes sociais e assista com calma. O meio é fraco quando o escopo é grande. E um formato semanal beneficiaria muito essa história em que o senso de urgência precisa estar apenas dentro da tela e não fora. Quem deveria ter pressa são eles, não você. Cada gota de sangue deve contar, mas quando você precisa se submeter a uma longa sentada para assistir ao espetáculo de carnificina, parar de se importar um pouco por querer chegar logo no final é um tanto quanto inevitável — se não fosse tão obviamente evitável.



E afinal, onde entra Poe nisso tudo?


Não sei vocês, mas meu primeiro contato com a obra do autor foi o filme A Orgia da Morte, de 1964, com Vincent Price — uma adaptação do conto A Máscara da Morte Rubra. Lá, os contornos sombrios do conto original davam espaço a um festival de luzes e cores altamente estilizado pelas lentes de Roger Corman.


Até hoje, aquele filme me marca como um carrossel de possibilidades para o que se pode fazer ao adaptar Poe. É possível adotar um tom soturno e modorrento? Claro que sim. Mas também é possível ser lúdico e divertido, além do que, o realizador pode cagar e andar para qualquer concepção de refinamento ou “prestígio”. E de muitas formas, isso é exatamente o que se faz aqui na minissérie. Não dá para dizer que Flanagan se despe completamente de suas características pessoais. Muito pelo contrário, e é justamente a partir do conflito entre o lado “frio” de Mike Flanagan e o lado “quente” de Edgar Allan Poe, que nasce o que este lançamento tem de melhor: uma cacofonia de sons e tons, uma mescla perfeitamente certa de crueldade punitiva, junto com uma ternura surpreendente. Sim, o melodrama vive e o melodrama resiste.



E se a minissérie tem um grande problema, acaba sendo a forma como Flanagan trabalha o sexo. Depois de nos oferecer histórias tão pudicas e virginais quanto Residência Hill ou Missa da Meia-Noite, o cineasta tenta fazer seu melhor para trazer o tesão num grande espetáculo, seja através de um bacanal digno de Dionísio ou das cenas fetichistas envolvendo a personagem de Samantha Sloyan — atriz excelente, inclusive. Há espaço para o desejo e a admiração, mas também para o voyeurismo puro. Porém, o olhar virginal não deixa a câmera e nenhuma das cenas envolvendo sexo realmente soam sexuais. Há sexualidade em tela, mas ela é quase estéril. You go, girl, give us nothing, mas valeu a tentativa!


Com o contrato encerrado com a Netflix, Mike Flanagan dá à Casa de Usher um clima de despedida — mas não aquelas despedidas fúnebres, morosas e melancólicas. É uma festa de arromba com uma família que se odeia reunida e forçada a fingir intimidade. É uma novela da Globo, e não qualquer novela, mas aquela das onze, onde sempre tem dedo no cu, gritaria, Drica Morais e muita sacanagem.


Uma porta se fecha e outra se abre. Talvez o futuro do marido de Kate Siegel seja brilhante em outras plataformas, especialmente com uma adaptação de A Torre Negra a caminho pelas mãos de sua produtora. No entanto, essa deliciosa minissérie oferece uma troca de perspectivas, uma nova visão que mostra como o diretor é capaz de transitar do drama para a comédia com uma naturalidade muito bem-vinda. Afinal, sangue e perucas nunca sairão de moda.

 

co-escrito por Gustavo Fiaux


THE FALL OF THE HOUSE OF USHER

Minissérie | 2023 | 8 episódios

Criada por: Mike Flanagan

Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Mary McDonnell, Carl Lumbly, Samantha Sloyan, T'Nia Miller, Rahul Kohli, Kate Siegel, Sauriyan Sapkota, Zach Gilford, Willa Fitzgerald, Katie Parker, Malcolm Goodwin, Michael Trucco, Henry Thomas, Mark Hamill


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